
Créditos: PA Images
Por: Roberto Takaki
Passados trinta anos desde aquele fatídico 1º de maio de 1994, por que Ayrton Senna ainda é cultuado e idolatrado nos quatro cantos do mundo? O que faz com que sua memória esteja mais viva do que nunca?
Certamente o impacto da morte trágica ao vivo diante dos olhos de milhões de telespectadores contribuiu para elevar o tricampeão brasileiro ao patamar de mito, uma verdadeira lenda da Fórmula 1 que perdura até hoje. Mas isso por si só não basta para explicar por que Senna é lembrado e celebrado com a mesma intensidade em diferentes países e por diferentes gerações.
Estilo de pilotagem arrojado e eletrizante
Jackie Stewart, Niki Lauda e Nelson Piquet também ganharam 3 títulos mundiais cada um; Alain Prost, quatro. Mas o estilo técnico de pilotagem de todos eles (muitas vezes mais eficaz do que o estilo arrojado de Senna, saliente-se) não chegava a levantar a multidão na arquibancada e não arrebatava corações tanto quanto as ultrapassagens ousadas do brasileiro e sua pilotagem sempre no limite, fazendo os espectadores prenderem a respiração e até mesmo os mecânicos e chefes das outras equipes se debruçarem no muro do pit lane para acompanhar suas voltas de classificação eletrizantes.
Desde a morte do velocíssimo bicampeão escocês Jim Clark em 1968 (a quem inclusive Senna sempre foi comparado), todos esses outros grandes campeões que o sucederam nos anos 1970 e 1980 tinham estilo muito parecido (técnico e calculista); Niki Lauda era conhecido como “o computador”, enquanto Alain Prost era chamado de “o professor”. Gilles Villeneuve surgiu com um estilo ultra-arrojado e chamativo, porém passou longe da inteligência e dos resultados atingidos por esses outros pilotos. Ou seja, em quase 2 décadas desde Jim Clark, Senna foi o primeiro piloto a aliar velocidade, arrojo, espetáculo e resultados, numa época em que a cobertura da Fórmula 1 estava se tornando planetária, com patrocínios milionários de multinacionais de tabaco e centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo tendo acesso a um aparelho de TV.
Por ocasião dos 20 anos da morte de Senna em 2014, o apresentador do programa Top Gear Jeremy Clarkson declarou o seguinte: “eu sempre preferi Gilles Villeneuve. Mas depois de assistir dezenas de horas de filmagens sobre Senna para produzir este especial, eu cheguei à seguinte conclusão: Villeneuve foi espetacular em diversas ocasiões. Já Senna foi espetacular todas as vezes em que sentou ao volante de um carro de Fórmula 1.
Analisando friamente e deixando a idolatria de lado, pessoalmente eu considero que Prost foi melhor do que Senna se analisarmos apenas pilotagem e resultados. Por sinal, nos 2 anos em que ambos foram companheiros na McLaren-Honda correndo rigorosamente com o mesmo carro e sob as mesmas condições, o francês bateu o brasileiro na soma total de pontos em 1988 (105 a 94) e também em 1989 (76 a 60). Ocorre que em 1988, o regulamento da Fórmula 1 previa o descarte dos 5 piores resultados dentre as 16 corridas disputadas; dessa forma Prost, que havia feito uma temporada muito mais consistente (7 vitórias e 7 segundos lugares), foi obrigado a descartar 18 pontos, enquanto Senna (que marcara 8 vitórias, 3 segundos lugares, um quarto e um sexto lugar) descartou apenas 4 pontos. Com isso, o campeonato terminou com o título para o brasileiro (90 pontos) e o vice para o francês (87 pontos), graças ao regulamento que acabou favorecendo o estilo “tudo ou nada” de Senna.
Já em 1989 não teve conversa: sem pontos para descartar, Prost sagrou-se campeão 16 pontos à frente do seu rival. Aqui cabe um parêntese: se o então presidente da FIA Jean-Marie Balestre não tivesse “roubado” os 9 pontos da vitória de Senna na penúltima etapa do campeonato em Suzuka a fim de favorecer seu compatriota Prost, a diferença teria caído para 7 pontos (76 a 69) porém de qualquer maneira o francês teria se sagrado campeão – ao contrário do que acreditam aqueles que dizem que o brasileiro teve o título roubado naquele ano.
Foto: ARNAL/Gamma-Rapho via Getty Images
Dos 13 anos em que competiu na F-1, Prost foi campeão 4 vezes e vice outras 4; porém mesmo com todo esse cartel superior a Senna, no auge da rivalidade entre os dois parte da própria torcida francesa preferia o brasileiro justamente por causa da diferença entre os estilos de pilotagem: enquanto Prost vencia “sem emoção” e sem parecer ser tão rápido (ainda que efetivamente fosse, e muito), Senna tirava o fôlego dos espectadores nos 4 cantos do mundo com seu estilo arrojado e eletrizante, ultrapassagens ousadas e voltas de classificação sempre no limite, conquistando resultados muitas vezes além do que o carro lhe permitia.
Carisma, cuidado com a imagem e o resgate do orgulho de ser brasileiro
Afinal, o que explica toda essa idolatria e esse alcance global de Senna em meio a fãs de Fórmula 1 de diferentes gerações?
Não existe um motivo específico, mas sim uma conjunção simultânea de diferentes fatores:
– A morte trágica e impactante no auge da sua carreira, transmitida ao vivo diante dos olhos de milhões de espectadores ao redor do mundo;
– O estilo emocionante de pilotagem sempre no limite e sua busca incessante pela perfeição;
– Sua atenção aos mínimos detalhes e sua capacidade de engajar toda a equipe para trabalhar arduamente pois sabia que seu piloto se entregaria de corpo e alma na luta pelo melhor resultado possível (e às vezes até impossível com o carro que tinha em mãos);
– Senna foi o primeiro piloto a se preparar física e mentalmente para as corridas, elevando o nível de profissionalização (e de salários) da categoria a outro patamar nunca visto antes;
– Carisma. Senna tinha uma aura, uma energia inexplicável que capturava a atenção de todos ao seu redor, independentemente da pessoa gostar ou não dele;
– Seu alto nível de consciência em relação à sua imagem pública de ídolo mundial norteava suas falas e ações politicamente corretas (por vezes até premeditadas), que geraram suas conhecidas frases de efeito motivacionais – e isso muito antes da internet e das mídias sociais;
– Preservava como ninguém sua imagem pública e não permitia que a mídia invadisse sua vida privada. Por um lado isso criou uma “blindagem” em torno da sua pessoa tornando-o um ser quase que intocável, mas por outro cativava todos seus fãs pois ele quase sempre mantinha uma postura de humildade apesar dessa sua condição;
– Numa época de hiperinflação, economia estagnada e seleção de futebol que não ganhava copas, Senna era o Brasil que dava certo e vencia adversários de outros países muito mais desenvolvidos. E ao final levantava com orgulho a bandeira brasileira mostrando ao mundo todo de onde ele vinha;
– Nas manhãs de domingo ele dava alegria e orgulho ao povo sofrido, elevando nossa autoestima e fazendo com que esquecêssemos temporariamente dos problemas;
– Apesar de sempre trabalhar sua imagem pública, o amor de Senna por Deus, pela família e pelo Brasil eram sinceros e vinham de dentro, e as pessoas sentiam isso;
– Senna foi grande dentro e fora das pistas. Foi uma das primeiras personalidades globais a fazer doações anônimas sistematicamente e a criar uma fundação beneficente;
– Sua rivalidade contra Prost e sua luta (infrutífera) contra a política do sistema dentro da F-1 (que ele acreditava ser contra ele) eram levadas por ele a ferro e fogo, de maneira quase que apaixonada. Essa cruzada de Senna transcendeu o próprio esporte e elevou sua exposição midiática a níveis estratosféricos;
– No Japão, a semelhança da personalidade de Senna com os samurais e seus valores de honra, luta, coragem e perseverança o transformou em um ídolo de proporções equivalentes às que ele tinha no Brasil.
Quem é o melhor piloto de todos os tempos?
Esse tema gera e sempre gerou discussões infrutíferas e sem-fim. Eu pessoalmente acho que somente aqueles que viram todos os pilotos correr têm condições de afirmar com propriedade quem é ou quem foi o melhor de todos eles. De cabeça, acho que o único que conheço nessa condição é Claudio Carsughi.
Italiano de nascença e radicado no Brasil desde os anos 40, o Mestre (como ele é conhecido no meio jornalístico) assistiu e cobriu os grandes prêmios do campeonato mundial de Fórmula 1 desde sua primeira edição oficial no ano de 1950, portanto viu os feitos de todos os grandes campeões desse esporte desde Juan-Manuel Fangio até Max Verstappen.
Para ele, o maior e melhor de todos é o argentino Fangio, pentacapeão mundial nos anos 50. Em segundo lugar, na opinião de Carsughi estariam empatados o escocês bicampeão Jim Clark e nosso querido tricampeão Senna.
Dos pilotos multicampeões eu só assisti ao vivo as corridas de Nelson Piquet em diante; ou seja, de Niki Lauda para trás eu só posso avaliar os feitos e o estilo de pilotagem com base nos registros em video e texto. Por isso prefiro acompanhar o Mestre Carsughi e também eleger Fangio como o melhor de todos, mas na segunda posição eu ficaria em dúvida entre Jim Clark, Alain Prost (para Bernie Ecclestone, o melhor dentre todos que ele viu), Ayrton Senna e Michael Schumacher. Não tenho nada contra Lewis Hamilton (o melhor na opinião de Reginaldo Leme) nem Max Verstappen, porém prefiro deixá-los de fora do meu ranking “top 5” pois ambos já competem em uma época em que existe um batalhão de profissionais de todas as áreas e tecnologia de sobra à disposição para fazer boa parte de todo o trabalho que era exigido dos pilotos até o final dos anos 1990. Por isso para mim essa não seria uma comparação justa, mas certamente esses 2 gênios têm lugar garantido no meu “top 10”.
No final das contas, após mais de 40 anos acompanhando F-1 assiduamente como grande fã, minha conclusão é a de que não é possível definir quem foi o maior de todos com base simplesmente em critérios objetivos. Para os argentinos, o maior futebolista de todos foi Maradona (ou Messi); já para os portugueses, é Cristiano Ronaldo. Não adianta os brasileiros baterem o pé pois a “majestade” de Pelé não é unânime nos 4 cantos do mundo e sempre vai existir um componente de subjetividade baseada na nacionalidade do esportista.
O melhor de todos é aquele que significou algo na sua vida
O ano era 1984. Jogos Olímpicos de Los Angeles. Ascensão de ídolos como o superatleta Carl Lewis (inspiração para o pai de um certo Lewis Hamilton escolher o nome do seu filho) e a conquista da até então inédita medalha brasileira no vôlei pela nossa “geração de prata”. Mas por algum motivo que não sei explicar, naquele ano o que atraiu mais minha atenção foram algumas corridas de Fórmula 1 com performances memoráveis de um jovem pouco conhecido porém bastante promissor chamado Ayrton Senna, que corria por uma modesta equipe de fim de grid chamada Toleman.
Quem afinal era aquele estreante intrometido que por vezes ousava colocar seu carro branco quase sem patrocínio em meio às McLaren, Brabham, Ferrari e Williams muito mais poderosas e guiadas por pilotos muito mais experientes? Três pódios logo no ano de estreia, um deles uma “quase-vitória” não fosse a “francesada” da interrupção prematura da prova de Mônaco a mando de Jean-Marie Balestre…Aquilo com certeza começou a despertar minha paixão pelo esporte e principalmente por aquele brilhante piloto brasileiro, apesar do bicampeonato de Nelson Piquet no ano anterior, a quem a imprensa logicamente dava muito mais destaque na época.
Senna disputou a F-1 de 1984 a 1994; sua ascensão coincidiu justamente com o final da minha infância e o período da minha adolescência, dos meus 10 aos 20 anos de idade. Passei a acompanhar as corridas e tudo o que era publicado sobre Senna com fervor e paixão, da mesma maneira que um torcedor fanático pelo seu time do coração – a ponto de ficar conhecido na família e pelos amigos por essa idolatria. Por sinal, certa vez em 1987 faltou luz na nossa casa em uma manhã de grande prêmio; meu pai, prevendo que eu preferiria perder um braço a perder uma corrida do meu ídolo, me acordou pouco depois das 8 horas, pegamos o carro e fomos direto para a casa do meu primo, onde pudemos assistir a prova sem mais intercorrências.
Por isso acho que não é exagero dizer que Senna contribuiu para a formação dos meus valores e da minha personalidade talvez mais do que meu próprio pai. Meu fanatismo chegou a tal ponto que eu chegava a gritar e me desesperar quando algo anormal tirava meu ídolo da corrida, como por exemplo a batida em Mônaco e em Monza em 1988 quando liderava ambas as provas; ou então a estúpida colisão com um já desclassificado Nigel Mansell no Estoril em 1989, desperdiçando preciosos pontos que lhe fizeram muita falta na reta final daquele campeonato. Interessante notar que à época minha mãe dizia que quando escutava um grito meu durante a corrida, ela já sabia que algo havia acontecido com Senna…..
De certo modo ele foi um modelo em quem eu me espelhei para me tornar quem sou, e posso dizer que vivi com intensa paixão cada largada, cada curva, cada vitória e cada derrota como se estivesse na pele dele. Por isso, analisando somente pelo lado da emoção e não com a razão, para mim não existia e nunca iria existir melhor piloto do que Ayrton Senna, e não admitia nenhuma opinião em contrário. Foi somente de uns 10 anos para cá que eu passei a analisar mais friamente e concluí que sim, existiram pilotos melhores e/ou mais completos do que ele; mas para mim o que importa é tudo aquilo que a pessoa vivenciou e o que seu ídolo significou e efetivamente contribuiu para a vida dela.
Experiências inesquecíveis com a McLaren e a Williams
Desde os anos 80 eu leio, assisto e coleciono praticamente tudo o que é publicado e vendido sobre Ayrton Senna no Brasil e em outros países, por isso meu apartamento de 63 metros quadrados se transformou em uma espécie de minimuseu sobre o tricampeão. Por isso imaginem só o que significou para mim ter a oportunidade de sentar na McLaren MP-4/5B pilotada pelo meu ídolo no GP da Itália de 1990…
No ano 2000 o Instituto Ayrton Senna organizou uma megaexposição sobre o tricampeão no pavilhão da Bienal do Parque do Ibirapuera – na minha opinião, uma das mais completas que já vi até hoje pois tinha não apenas fotos, capacetes, troféus e macacões como também o próprio carro usado por ele e que hoje decora a recepção do instituto em São Paulo. Para quem não conhece a estória, na segunda metade do campeonato de 1990 a Ferrari de Alain Prost havia superado a McLaren e estava desempenhando melhor, por isso Ron Dennis, o chefe da equipe na época, disse a Senna antes do GP da Itália que duvidava que ele pudesse vencer a corrida. Seu piloto prontamente perguntou se ele queria apostar e, como Dennis não resistia a uma aposta e achava improvável uma vitória de Senna, ofereceu o próprio carro como prêmio caso seu pupilo chegasse em primeiro lugar. O resto é história…..
Para um fanático torcedor de carteirinha como eu (eu realmente tinha uma carteirinha de membro da TAS – Torcida Ayrton Senna), ter a chance de chegar perto, tocar no volante e até sentar no carro que foi pilotado pelo seu ídolo de vida foi uma experiência indescritível; algo verdadeiramente místico, surreal. Inicialmente confesso que hesitei, em parte devido ao nervosismo e um pouco também por respeito ou receio de tocar algo que para mim era quase que sagrado; mas acabei tomando coragem, subi no tablado onde o carro estava exposto, caminhei até ele e, com os pelos arrepiados, vi bem de perto na lateral do santantônio a bandeira brasileira com a famosa inscrição “Senna Boss” (Hugo Boss, patrocinadora da McLaren à época).
Quando olhei dentro do cockpit percebi o quão minúsculo e apertado ele era; e ainda que eu tivesse apenas 26 anos de idade, estando na minha melhor forma física e sem gordurinhas sobrando como tenho hoje aos 50, tive receio de entrar e ficar entalado lá dentro – naquela hora me dei conta de que Senna era realmente muito magro e atlético. Por isso, ainda que tivéssemos os mesmos 70 quilos de peso, resolvi não abusar do privilégio que tive de visitar a exposição depois do horário de fechamento da Bienal – algo que só foi possível graças a uma pessoa ligada ao evento que conheci. E com todo o cuidado do mundo e o coração quase saltando pela boca, decidi apenas me sentar na lateral do carro sobre o radiador esquerdo e pedi para meu amigo registrar esse momento único – a foto é exatamente essa que vocês vêem neste artigo e que guardo até hoje como um verdadeiro troféu.
Foi uma experiência inesquecível que poucas pessoas no mundo tiveram o privilégio de vivenciar, e até hoje fico arrepiado ao lembrar e escrever estas linhas. Só experimentei uma sensação semelhante quando visitei o museu da equipe Williams na Inglaterra e o guia, ao saber que eu era brasileiro e fã de Senna, deixou-me subir no tablado e tocar o interior do cockpit do FW-16 pilotado por ele; as bordas do cockpit inclusive tinham marcas de desgaste nos locais onde as mãos dele raspavam ao virar o volante, de tão apertado que era o espaço.
Enfim, seja no futebol, seja na Fórmula 1 ou em qualquer outro esporte, o conceito de “melhor de todos os tempos” é relativo e muito mais amplo do que sugerem as infindáveis discussões de bar. De Fangio a Max Verstappen, a escolha vai depender das experiências que cada torcedor vivenciou na sua época, das referências de comparação que cada um possui e, não menos importante, da nacionalidade da pessoa – afinal de contas não somos máquinas, portanto é quase impossível ser 100% imparcial quando se é brasileiro e se tem o privilégio de ter gênios do esporte como Pelé e Ayrton Senna.