O que fazer quando o concessionário é forçado a vender o negócio?
As grandes montadoras já consolidaram parte de suas redes de concessionárias nas mãos de grupos capitalizados, com governança, planos de sucessão, estrutura centralizada, maior poder de influência perante as fabricantes ou junto às associações de marca e assim começou aquela história de que “todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros”.
Frequento concessionárias de veículos, oficinas e balcões de peças, desde quando VW, Ford, Fiat e Chevrolet, juntas, detinham 95% do mercado de carros no Brasil. Ser concessionário nos anos setenta e oitenta era glamoroso e em algumas cidades do interior esse empresário era quase uma autoridade. As equipes de vendas nem precisavam correr atrás dos clientes, eles vinham até a loja; o conceito de vendas ativas limitava-se aos anúncios publicitários da época e às agendas de telefones dos vendedores. As coisas mudaram, o setor evoluiu, as concessões se profissionalizaram e a grande maioria dos titulares sem sucessores na família já não estão no negócio, aliás, nem mais as fábricas da Ford estão no país.
Salvo exceções em marcas novas, não há mais espaços para crescimento orgânico dentro de uma rede de concessionárias estabelecida e consolidada, principalmente se a marca for uma “blue-chip”. É preciso comprar uma concessionária, encontrar quem queira vender e contar com a aprovação da montadora. Hoje, dificilmente as montadoras aprovam compradores que não tenham experiência prévia no ramo de distribuição de veículos. As marcas líderes fizeram a lição de casa em suas redes, mas as ondas de reestruturação das concessionárias são cíclicas e sempre haverá boas oportunidades, tanto para quem quer comprar quanto para quem quer vender.
Quando o concessionário é forçado a vender o negócio
É comum que as montadoras, ao reestruturarem suas redes de concessionárias, incentivem concessionários antigos a deixarem o negócio e se a montadora souber conduzir as negociações, as partes encerrarão a relação contratual de forma amigável. Se a montadora quiser que a solução ocorra em um prazo razoável, participará, de alguma forma, do negócio. Teoricamente, a montadora não pode, ou não deve, se envolver em um processo de compra e venda de concessionária, mas “a teoria na prática é outra”. Porém, quando não há sensibilidade das partes e o divórcio segue o caminho judicial, o custo é muito elevado, não só financeiro, mas de tempo e saúde. Uma demanda judicial pode demorar muitos anos e até a decisão final da ação as pessoas que trabalhavam na montadora, talvez, nem estejam mais lá, mas o concessionário e sua família continuarão envolvidos emocionalmente e financeiramente.
Cálculo do valor da concessionária e variáveis específicas
Há uma grande quantidade de variáveis que devem ser consideradas na equação de cálculo do valor de uma concessionária de veículos e algumas dessas variáveis não são ensinadas nas escolas. Analogamente, há conceitos acadêmicos de avaliação e análise de investimentos que não se aplicam a esse tipo de negócio e quando o campo de jogo é o mercado brasileiro, algumas peculiaridades exigem experiência.
Vender ou comprar uma concessionária de veículos no Brasil não é algo simples e não se deve conduzir as análises como se fosse negociar ações na B3.
A primeira coisa que as partes interessadas devem ter em mente é que uma concessionária de veículos, seja carros, caminhões ou máquinas, por ser uma “concessão” não está sujeita às fórmulas acadêmicas de avaliação de empresas que incluem a linha da “perpetuidade”, isso porque, uma concessão pode ser cancelada a qualquer momento pela concedente e dessa forma o item “perpetuidade” tem valor irrisório no “valuation”. Se tal cancelamento ocorrer por decisão exclusiva da concedente, paga-se a indenização e encerra-se a relação. Se o cancelamento ocorrer por causa justificada, pode até gerar a necessidade de a ex-concessionária ser demandada a indenizar a montadora.
A questão da rescisão contratual, direitos, deveres e fórmula de indenização, estão muito bem estabelecidas na Lei 6.729/79 (Lei Renato Ferrari) a partir de seu artigo 22, inclusive. Essa lei foi parcialmente alterada pela Lei 8.132/90. Quanto à indenização, o método de cálculo está descrito no artigo 24 e em seus incisos.
O método preferido e mais aceito para avaliação (valuation)
Não há uma fórmula de prateleira que possa ser utilizada plenamente em qualquer avaliação de concessionária. Prefiro utilizar o método do “Fluxo de Caixa Livre Descontado”, enriquecido com aspectos de gestão do grupo comprador e também, gestão e estratégias da própria marca concedente. É importante ressaltar que o “Fluxo de Caixa Livre” não é EBITDA e seu cálculo se dá pela composição do “Fluxo de Caixa Operacional” com o “Fluxo de Caixa de Investimentos (Capex)”. Não se calcula o valor de uma concessionária por meio do “múltiplo de EBITDA”, trata-se de um erro crasso.
Os planos futuros da fabricante terão valor na análise, se forem parte de um compromisso formal assumido. Apresentações verbais devem ser consideradas com cautela, afinal, salvo exceções, planos, gestão e pessoas nas montadoras costumam mudar periodicamente, assim como as surpresas econômicas do país podem alterar os planos estratégicos, da noite para o dia.
Fazer investimentos considerando um cenário futuro virtual, pode ser tão arriscado quanto comprar ações de um estaleiro que só existe no papel e nunca construiu uma única embarcação. Portanto, nessa relação entre concessionárias e concedentes, “vale o que está escrito” e somente isso. Concessionários não devem basear seus negócios em acordos ou promessas verbais das montadoras.
Fundo de Comércio no setor automotivo
A definição de Fundo de Comércio vai além daquela aceita jurídica e contabilmente, apesar de divergências, como o conjunto de bens e capital, tangíveis ou intangíveis, corpóreos ou incorpóreos, que viabilizam a atividade, o negócio e sua continuidade, embora no setor automotivo, por envolver concessão, a perpetuidade não deve ser considerada. Nota: Valor da “bandeira” não se discute, ao menos com esse nome. A bandeira é da montadora e o concessionário não pode vendê-la; o que se vende é o fundo de comércio, ativos e as expectativas futuras.
Calcular o impacto de um único ponto percentual de participação de mercado da marca no seu Fundo de Comércio é complexo e as fórmulas utilizadas na avaliação de empresas de outros setores, não funcionam aqui.
O valor de um ponto percentual de participação no mercado automobilístico deve ser identificado diferentemente por marca e cada caso é um caso. É por meio desse cálculo que definimos, por exemplo, quais redes de concessionárias podem ser chamadas de “Blue Chips”.
A “Absorção do Pós-Venda” é um conceito fundamental no negócio, tanto para montadoras, quanto para as concessionárias. Administrar esse ativo requer competência e depende da previsibilidade do futuro da própria marca. Como exemplo, pense em um empresário que comprou uma concessionária Ford automóveis há três anos, sem analisar a “desconstrução” do fundo de comércio da marca, coisa que a linha de participação de mercado já vinha sinalizando, claramente, desde de 2012. Agora, imagine que ele tenha pago ágio pela “marca” e apostado na rentabilidade futura do pós-venda para bancar os custos fixos da operação. Bem, uma adequada análise não o teria levado a tal investimento – ver gráfico ao final deste artigo.
Para as montadoras, conquistar ou perder “market share” impacta diretamente no Fundo de Comércio, na imagem de marca e no valor de revenda dos veículos usados. Quanto às redes de concessionárias, elas se beneficiam com o aumento do parque circulante, o que viabilizará ações de absorção do pós-venda. Se a rede for bem administrada pela montadora é inevitável o fortalecimento do canal de distribuição. Rede forte, marca forte.
Ainda vale a pena comprar uma concessionária de veículos?
Se você já atua no mercado de distribuição de veículos e possui uma boa dose de resiliência, a resposta é sim! Apesar dos altos e baixos da economia, que sempre existiram, o mercado automobilístico brasileiro continuará em crescimento por muito tempo e acompanhará a chegada das novas tendências tecnológicas. As redes de concessionárias construíram o parque circulante que temos hoje, passaram por vinte crises nos últimos quarenta anos e continuarão fazendo parte das novas formas de relacionamento com os consumidores. Contudo, se você não é do ramo e pretende entrar nele, recomendo cuidado, cautela e muito estudo. Capital intensivo com rentabilidade variável, sujeito ao humor dos representantes da fabricante; esse negócio pode causar dores de estômago, mas também, dar muitas alegrias.
Há um processo contínuo de consolidação de algumas redes e quando uma concessionária é colocada à venda a lista de interessados é enorme, geralmente investidores que já fazem parte da própria rede. Esse cenário não é realidade para todas as marcas, principalmente para aquelas com “market share” muito baixo e futuro incerto.
Conquistar espaço no mercado, no Brasil, é função da capilaridade, rede capitalizada, produto adequado, pós-venda estruturado, imagem de marca, atitude comercial, inteligência de mercado, maturidade de gestão, conhecimento do território, compreensão da cultura e também, um pouco de humildade.
Quanto ao impacto de um único ponto percentual de “market share” no Fundo de Comércio da montadora, para um mercado brasileiro hipotético de três milhões de veículos por ano, poderá representar, segundo cálculos da MA8, até duzentos milhões de dólares por ponto percentual, dependendo da marca, da posição em participação, tradição, histórico, estrutura de rede e do parque circulante.
Em mais de trinta e cinco anos atuando profissionalmente nessa área, participei em dezenas de projetos de compra e venda de concessionárias de veículos e na maioria dos casos, os elementos levados em consideração nas avaliações assumiram características específicas e não-repetitivas, seja por imagem da marca, desempenho em participação de mercado, fundo de comércio, mix de produtos, áreas de atuação, capital exigido, governança empresarial, planos de sucessão e outros não menos importantes.
Por fim, não se esqueça, a rede de concessionárias é o espelho da montadora e as pressões da matriz na gestão local, inevitavelmente, serão repassadas em cascata. Política, diplomacia e formalização, são três termos fundamentais que abrem o primeiro capítulo do livro: “como se relacionar bem com a montadora, ser respeitado e não perder os seus direitos”.
Leia também a coluna anterior:
https://carsughi.uol.com.br/2022/01/as-concessionarias-nao-vao-acabar-e-pode-haver-impedimento-para-a-criacao-das-agencias-entenda-o-tema/