As associações de marca terão papel decisivo no novo modelo de negócios.
Há um movimento em alguns países, no qual as tradicionais concessionárias de veículos deixarão de existir com a chegada dos carros elétricos e se tornarão “agências”. Dessa forma, os clientes comprarão os carros diretamente das montadoras e as “agências” receberão comissão pela intermediação. Esse não seria um grande problema em nosso país, pois as vendas diretas em volumes muito maiores do que os recomendados na PCCE (Primeira Convenção das Categorias Econômicas) e não respaldados nas convenções individuais de marca, já ocorrem há anos e tacitamente as associações concordaram com isso.
Algumas marcas, em outros países, indicam que irão mudar os contratos de concessão, nomeando “agentes” para acomodar o novo cenário tecnológico e as novas formas de fazer negócios. Ao mudar o contrato de concessão o novo desenho deve ser estendido, obrigatoriamente, a todas as concessionárias da rede e da marca.
Com a chegada desse ambiente por aqui é mandatório que as montadoras e as concessionárias, por meio de suas associações, revejam o modelo de relacionamento, sem alterar três fundamentos básicos: técnico, político/diplomático e legal.
A mudança do modelo de negócios no Brasil, de concessionárias para agências, deve enfrentar alguns impedimentos, culturais, operacionais e legais, mas se não houver respeito às leis do setor, isso pouco importará. A Lei Ferrari agoniza, as convenções de marca têm sido subvalorizadas pelas montadoras e as concessionárias têm uma parcela de culpa nisso.
Aqueles que querem entrar no negócio de distribuição de veículos, em um novo cenário como “agência”, serão seduzidos com menores exigências de investimentos e maior flexibilidade da operação, mas quem já está no setor há muitos anos e enfrentou as crises econômicas e depressões do mercado, sabe que essa relação se resume em números: market share, volume de vendas, índice de satisfação dos clientes e absorção de pós-venda da montadora. Se os carros elétricos venderão menos peças e serviços, pode esperar que a pressão virá do outro lado, afinal, os investimentos precisam ser pagos e as montadoras não são entidades beneficentes.
A implementação das “agências” no Brasil, em substituição ou complemento às redes de concessionárias, não deve ocorrer tão facilmente, principalmente porque as concessionárias continuarão existindo sob o regulamento da Lei Ferrari (Lei 6.729/79, parcialmente alterada pela Lei 8.132/90) e da PCCE. Caso as montadoras nomeiem agentes, isso se daria sob as regras análogas à Lei 4.886/65 e aos artigos do Capítulo XII do Código Civil. Tal cenário só seria possível com a aprovação das associações e nessa situação, a FENABRAVE (Federação Nacional da Distribuição dos Veículos Automotores) precisa assumir um papel protagonista.
A Lei 4.886/65 regulamentou a atividade do representante comercial e ganhou forma de “agência” e distribuição no Código Civil de 2002. Nesse caso, a agência faz a intermediação da venda e ganha comissão, podendo se responsabilizar pela assistência técnica conforme o contrato. Já a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari), regulamenta a concessão mercantil da revenda e assistência de veículos e possui caráter de legislação especial.
Lei Renato Ferrari, até quando ela resistirá?
A Lei 6.729/79, parcialmente alterada pela Lei 8.132/90, tem sido desmoralizada em anos recentes, com decisões judiciais contrárias aos seus “mandamentos”, prejudicando muitas concessionárias de veículos canceladas unilateralmente ou preteridas pela montadora. Essa situação pode ter dado para algumas concedentes, a falsa sensação de que as fabricantes podem agir como querem e passar por cima “das regras”, mas as associações de marca das concessionárias deixaram isso ocorrer e uma vez perdido o respeito, recuperá-lo torna-se mais difícil.
As montadoras conseguem reestruturar suas redes de concessionárias do jeito que planejam, cancelando contratos, alterando áreas de atuação, concentrando a distribuição nas mãos de grupos maiores e até nomeando outro concessionário na área de um concessionário já existente, mas o que elas não podem é mudar o modelo de negócios, da concessão e a estrutura dos contratos, sem que a Lei vigente seja alterada ou novos acordos legais de convenção de marca sejam celebrados.
O que vem pela frente: Dois modelos de negócios convivendo juntos
A evolução das concessionárias nas últimas décadas se confunde com a própria evolução da tecnologia automotiva e dos modelos de gestão e governança. Contudo, o modelo de negócios estruturado em comprar para estoque e revender, ganhar comissão sobre vendas diretas, atender em oficina, vender peças e movimentar o segmento dos veículos usados, permaneceu inalterado nos últimos cinquenta anos. Entre as principais demandas que sobreviveram ao tempo, cotas, planos de vendas, manutenção de estoques, índices de desempenho, guias de instalações, identidade corporativa, linhas de crédito, garantias reais, treinamentos e mais algumas coisas que, quando colocadas na balança do demonstrativo econômico-financeiro, nem sempre mostram retorno adequado sobre os investimentos na concessão.
Com a chegada de novas tecnologias, carros superconectados, elétricos, híbridos, células de hidrogênio, veículos por assinatura, compartilhamento, utilização por demanda, assistência técnica remota pela fabricante (sem o conhecimento da concessionária), menor senso de propriedade do bem etc., a forma das concessionárias fazerem negócios sofrerá alterações, ao mesmo tempo em que o atual modelo de vendas e prestação de serviços para carros com motor a combustão permanecerá ativo por décadas e o Etanol assegurará o seu futuro no Brasil. Teremos dois modelos de negócios convivendo em paralelo, o modelo tradicional e um novo virtual, disruptivo, em que as montadoras terão total controle sobre os consumidores e as concessionárias nem tanto. Serão necessárias novas convenções de marca entre fabricantes e associações e a elaboração de uma convenção de marca costuma esconder alguns perigos.
Por que fazer uma nova convenção de marca específica
As montadoras sempre sonharam em vender e se relacionar diretamente com o cliente e com o mercado, sem passar pelas concessionárias. No Brasil a Lei 6.729/79, parcialmente alterada pela Lei 8.132/90, impede isso, salvo exceções em que as associações das concessionárias as permitam. Contudo, nos últimos anos as vendas diretas tornaram-se o principal canal da maioria das fabricantes, mas não majoritário. Vender volumes para grandes clientes é diferente de vender pequenos volumes diretamente e querer defender posições de mercado em market share. Sem a participação das concessionárias não é saudável nem sustentável. As montadoras não têm a vocação para o varejo, salvo em segmentos premium onde a relação com a marca pode assumir patamares mais elevados de confiança, exclusividade e atendimento.
É difícil imaginar que o Brasil concederá incentivos e benefícios fiscais aos carros elétricos, nos mesmos níveis que outros países o fizeram. É preciso esperar para conhecer a reação dos consumidores a essa nova tecnologia, mas esse segmento se consolidará, de fato, a partir da introdução das baterias com eletrólitos em estado sólido (solid-state) e do desenvolvimento do mercado de veículos usados.
A propósito, você compraria um carro elétrico usado com cinco anos de uso, sabendo que em pouco tempo terá que trocar a bateria e esse custo pode representar metade do preço de um veículo novo? Como se comportará o setor? Sem o desenvolvimento do mercado de usados, as vendas de novos não decolarão e quem fará esse desenvolvimento? As “agências”? Em adição a isso, não acredite que os preços das baterias dos carros elétricos cairão nos próximos anos, pelo contrário, a tendência é de alta. Em um ano, o preço do Lítio subiu 490% e o preço do Cobalto subiu 120%, lembrando que os carros elétricos levam muitos outros minerais nobres em sua composição. O volume de produção dos carros elétricos ainda é pequeno e os preços dos principais minerais, necessários para a produção das baterias, já dispararam. A lei da oferta e da procura é implacável; cresce a produção, cresce a demanda por elementos nobres, explodem os preços.
É preciso proteger a Lei Ferrari e os contratos de concessão
Mudar a Lei e os contratos de concessão é um campo minado para o setor automotivo, perigoso para as concessionárias, nem tanto para as fabricantes. Tenho alertado, há anos, que a Lei Ferrari é muito boa para os dois lados e deve ser preservada. O que faltou, em alguns casos, foi gestão dos processos legais que permeiam o relacionamento entre as montadoras e suas redes.
É preciso muita atenção para os movimentos e tendências que vão afetar o setor como um todo e isso vai além da chegada dos carros elétricos ao mercado. Algumas montadoras caminham no sentido de se tornarem empresas de tecnologia e as concessionárias podem passar a ser empresas de T.I., com um grande portal no “big data”.
A Lei 6.729/79 (Lei Ferrari) define o relacionamento entre as partes e se for respeitada e bem gerida durante o casamento, consiste em uma excelente âncora para os dois lados. As peculiaridades desse relacionamento comercial são (ou deveriam ser) definidas em convenções de marca e a diretriz é dada pela Primeira Convenção das Categorias Econômicas dos Produtores e dos Distribuidores de Veículos Automotores (PCCE), assinada em 1983.
Contrato de concessão é um símbolo pétreo no setor automotivo
O contrato de concessão não se muda, salvo motivos de força maior (aqui entendido como mudança na Lei). Se algo precisa ser mudado, que seja feito nas Convenções de Marca.
São tantas as novidades para o setor que, em uma análise superficial, eu diria que a regulamentação das relações entre fabricantes e redes de concessionárias, vigente há quase cinco décadas, não foi feita para conviver com o novo ambiente tecnológico dos negócios no setor automotivo, se não houvesse a PCCE. É importante que as redes de concessionárias e as fábricas redesenhem as suas convenções de marca e repensem a forma de relacionamento interno e externo, antes que seja tarde e alguma decisão seja tomada unilateralmente.
É preciso muito cuidado, responsabilidade e transparência ao abordar esse tema. Minha recomendação é que qualquer mudança seja realizada em convenção de marca, negociada e acordada entre as partes, e não no contrato de concessão. Esse tema deve ser, a partir de agora, a prioridade estratégica das marcas e de suas associações.
Em mais de trinta anos atuei diretamente na gestão de redes de concessionárias de carros, caminhões, ônibus, máquinas e conheço bem os anseios e angústias dos dois lados, fabricantes e distribuidores. É muito saudável quando as partes se toleram em momentos de turbulência e se amam na bonança, afinal, ao assinarem o contrato de concessão celebraram um casamento, com ônus e bônus.
Leia também a coluna anterior:
https://carsughi.uol.com.br/2022/01/esg-no-setor-automotivo-confusao-de-conceitos-e-pouca-transparencia/