Produção local, foco em novas tecnologias e produtos alinhados ao mercado brasileiro vão mudar a imagem que temos dos fabricantes da China
Nunca vou esquecer do pior carro que já dirigi em mais de 25 anos de carreira. Antes mesmo de ligar o motor, quatro defeitos já haviam saltado na minha cara: cheiro forte dos plásticos internos, rangido das molas do banco, barulhos na porta e o reflexo do brake-light no vidro traseiro.
Essa foi minha primeira experiência com o chinês Chery QQ, pouco tempo depois de sua estreia no Brasil, em 2011. Ele era a síntese dos primeiros chineses que estrearam no mercado brasileiro: automóveis de acabamento pobre e tecnologia defasada, mas carregados de equipamentos por um preço relativamente baixo.
Hoje os projetos de origem chinesa evoluíram bastante, embora essa imagem do passado ainda demore a se descolar, característica típica do mercado brasileiro de automóveis. Na verdade, estamos assistindo neste momento a uma reviravolta dessas marcas. O preço deixou de ser seu foco. Basta lembrar que na sua época o QQ era o carro mais barato do país, enquanto agora o Chery mais acessível ao bolso é o Tiggo 2 por R$ 85 mil, bem distante dos R$ 49 mil de um Renault Kwid.
Prepare-se para ver cada vez mais marcas de origem chinesa oferecendo produtos de tecnologia, acabamento e qualidade de construção semelhante à média do mercado e às vezes até superior. Os chineses serão no futuro o que os coreanos foram no passado, que migraram de patinho feio do mercado no fim dos anos 1990 para os atuais objetos de desejo, comparáveis aos japoneses.
A Chery não é mais a mesma
Veja o caso da Caoa Chery, que apesar de considerada por muita gente um fabricante brasileiro ainda tem 50% do controle nas mãos dos chineses. Seus modelos têm ganhado diversos testes comparativos de revistas e sites especializados, ao mesmo tempo em que as vendas dispararam com a nova estratégia de investir nos SUVs, mais alinhados aos desejos do público brasileiro.
Nos primeiros 11 meses deste ano, a marca acumulou 2,02% das vendas internas, muito mais do que em 2019, quando detinha apenas 0,75%. Parece pouco, mas isso significa que a marca quase triplicou sua participação de mercado em apenas dois anos. Que outra montadora teve tal desempenho? Ao mesmo tempo, ela deixou de importar veículos e passou a produzir localmente quase toda sua linha de nove modelos – a exceção é o elétrico Arrizo 5e.
BYD vai investir nos elétricos de luxo
A BYD – iniciais de Build Your Dreams (construa seus sonhos) – é outra montadora chinesa que também está surpreendendo o mercado. Ela lançou na semana passada seu primeiro automóvel no Brasil, o Tan, um impressionante SUV de luxo elétrico de 7 lugares que custa até R$ 500 mil. Em maio, é a vez do Han, um sofisticado sedã elétrico com porte de Audi A7.
Se você acha que a BYD é uma novata nesse jogo, é porque não imagina o excelente (e discreto) trabalho que ela tem feito por aqui nos últimos anos. Chegou ao país em 2013, montou uma fábrica de ônibus elétricos em Campinas (SP) em 2015, passou a produzir painéis solares em 2017 e inaugurou uma fábrica de baterias em Manaus (AM) em 2020.
Ainda pouco conhecida no Brasil, a BYD é uma gigante mundial. É a terceira maior montadora do planeta em valor de mercado (atrás apenas de Tesla e Toyota), é a segunda maior fabricante de veículos elétricos do mundo (só perde para a Tesla) e já foi a líder na produção global de baterias veiculares.
Great Wall produzirá em uma fábrica moderna
Outra gigante mundial que vem da China para dar trabalho às montadoras já estabelecidas por aqui é a Great Wall Motors (GWM). Suas intenções são tão sérias que comprou a fábrica que a Mercedes-Benz tinha em Iracemápolis (SP) para começar a produzir seus próprios veículos no país, com o objetivo de transformar o Brasil em um centro de exportação para a América do Sul.
A ambição é converter a discreta fábrica que produzia 2 mil veículos por ano e empregava 370 trabalhadores em um novo complexo para 2 mil funcionários que fabricarão até 100 mil unidades anuais. Para isso, já anunciou que vai investir R$ 4 bilhões em cinco anos.
Dentro dos novos planos, a meta é implantar uma linha de montagem robotizada, com processos de produção modernizados e alto índice de digitalização. A empresa vai apostar nos dois segmentos que mais crescem e que, não por coincidência, oferecem as maiores margens de lucro: SUVs e picapes.
A estreia será no primeiro semestre de 2022 por meio da importação e, no comecinho de 2023, vai se dedicar aos modelos fabricados no Brasil. Seu grande diferencial será comercializar desde o início da operação veículos híbridos e elétricos, inclusive quando tiver a produção local.
Só para entender quem é a GWM, estamos falando do maior fabricante de veículos de capital privado da China, um conglomerado formado por cinco marcas: Great Wall (focada em picapes), Haval (SUVs), WEI (SUVs de luxo), Tank (off-roads de luxo) e ORA (elétricos)
Até a pequena JAC Motors parece estar reencontrando seu rumo depois de decretar a recuperação judicial em 2019. Resolveu concentrar-se em um segmento pouco explorado no país: é a marca que tem a maior linha de veículos elétricos. São cinco automóveis de passeio, duas vans, uma picape média, um caminhão leve e um caminhão VUC. Dentro da nova estratégia, já conseguiu crescer 19% neste ano.
Os tempos dos carros chineses como o Chery QQ nunca estiveram tão distantes.
Leia também a coluna anterior:
https://carsughi.uol.com.br/2021/11/5-maneiras-em-que-o-5g-vai-revolucionar-o-uso-do-seu-carro/