∙ Como decifrar as mensagens de um passado recente e projetar os próximos anos.
∙ Os elementos de incentivo e fomento ao setor, que trouxeram marcas e investimentos entre 2007 e 2015, não estão mais presentes.
O setor automobilístico brasileiro é tão dinâmico e promissor, quanto incerto. Fazer projeções em um cenário de economia volátil, onde o humor dos investidores e o valor dos ativos pode ir do céu ao inferno, da noite para o dia, é um exercício de futurologia que, geralmente, tende ao erro. Contudo, há uma certeza, os dados históricos no setor automobilístico nos fornecem muitas informações, riquíssimas para análises. Elas nos permitem identificar as reações do mercado frente às euforias e depressões econômicas e projetar o que poderá acontecer.
Em mais de três décadas atuando profissionalmente dentro da indústria automobilística, vivenciei a maior parte dos planos econômicos que desafiavam a criatividade dos nossos empresários. Na época da hiperinflação eu fazia listas de preços de veículos em uma montadora e chegamos a emitir duas listas por mês, cada uma com até 20% de aumento (imagine isso a cada quinze dias). De fato, vivo esse ambiente há mais de cinquenta anos, pois cresci em uma concessionária Volkswagen, na qual meu pai trabalhava. Brincar entre os veículos na oficina e as prateleiras de peças era uma diversão para mim, em uma época na qual o Brasil tinha apenas três montadoras, pois a FIAT, a quarta marca, só chegou em 1976. Foi um período em que, ser concessionário de automóveis era algo glamoroso, certeza de bons lucros e pouca necessidade de inovação. Hoje, ser concessionário requer muita inovação, gestão moderna e resiliência. As entrelinhas deste artigo, a seguir, cobrem, igualmente, montadoras e redes de concessionárias.
Os próximos três anos serão decisivos para o setor no Brasil. A aprovação das reformas é fundamental para pavimentar o crescimento da economia, contudo não serão suficientes. O aumento do déficit primário em relação ao PIB e a manutenção de níveis elevados no custeio da máquina pública, podem obrigar o país a colocar as mãos nas reservas cambiais (um dos poucos lastros que ainda nos dão credibilidade) e isso tudo impactará diretamente no mercado financeiro, com reflexos imediatos no setor produtivo, nos índices de confiança, níveis de emprego e disposição para financiamento no varejo. O mercado automobilístico é um termômetro de tudo isso e o que acontecer, de hoje até o final de 2023, definirá o futuro de algumas montadoras no País.
A construção do “Fundo de Comércio” como função do market share
Por que a FIAT, VW e GM respondem por mais de 50% do mercado, há anos? Nos últimos dezessete anos, na média, as três marcas detiveram, juntas, 63% de todas as vendas de carros e comerciais leves no Brasil. Se considerarmos os últimos dez anos, as BIG-3 fizeram, juntas, 54% do mercado, mesmo com a escorregada da VW em 2016, que se recuperou muito bem na sequência. Planejamento estratégico, produtos adequados, rede de concessionárias capitalizada, conhecimento do território, tradição e humildade, abrem o primeiro capítulo da série: “Como ser competitivo no maior mercado automobilístico da América do Sul, apesar das reclamações do Custo Brasil”.
Muitos newcomers chegaram ao país na última década, mas se olharmos o gráfico com atenção, veremos que restou uma disputa particular entre marcas abaixo da linha dos 10% de market share. A Ford se deixou entrar nessa zona de conflito e não aguentou. Apesar de sabermos que a Ford tem sólidos planos estratégicos de restruturação global, é evidente que, se a empresa tivesse mantido um market share maior no Brasil, não teria tomado a decisão de deixar o país. Se olharmos ainda com mais atenção, veremos que a Ford pode não estar sozinha em futuros ajustes no setor. A linha pontilhada representa o market share de outras 33 marcas.
A saída da Ford não deve ser considerada uma tendência, mas um risco de acenderem as luzes de alerta nas matrizes de algumas marcas, em seus países de origem. O setor automotivo e as redes de concessionárias não costumam ser entidades beneficentes e não há como sustentar operações sem resultados na última linha do P&L. Os próximos três anos serão críticos, caso o mercado consumidor e os índices de desemprego e confiança não reajam. Vale lembrar que, uma vez tomada decisão na matriz é quase impossível revertê-la e isso vale para empresas de origem norte-americana, europeia, nórdica ou asiática.
Olhando pelo retrovisor
O gráfico a seguir mostra alguns dos principais fatores que ajudaram a trazer novas montadoras para o Brasil entre 2007 e 2015, ou motivaram a construção de novas fábricas para marcas aqui instaladas. Os anos dourados se foram e a reversão desses elementos pode significar o início de um movimento de fuga do país, para marcas com volumes e market share baixos, com modernas fábricas ociosas, que não rentabilizam os investimentos, nem das montadoras e nem das concessionárias.
O setor investiu em uma projeção que apontava para um mercado de cinco milhões de veículos em 2016. Chegamos a 3,8 milhões em 2012, mas nunca mais nos aproximamos desses números e lá se vão oito anos. Temos dez marcas que detêm 93% do mercado e outras trinta e cinco marcas nos 7% restantes. A conta não fecha para muitas empresas.
Quais montadoras se deram melhor nos últimos cinco anos?
Foi um dos períodos mais críticos da nossa história industrial e econômica recente, apesar dos juros baixos, recordes no agronegócio e reservas cambiais nas alturas. Contudo, planejamento estratégico é algo que se faz bem antes e o que vemos nos gráficos acima são os resultados. De 2015 a 2020 tivemos o meio e o fim de uma crise, o fechamento de centenas de concessionárias pelo país, novas tendências de mobilidade, mudanças de conceitos na indústria, a implantação da manufatura 4.0 (que requer grandes investimentos), mudanças de comportamento do consumidor e o início de outra crise. Batendo tudo no liquidificador e coando, apenas cinco montadoras (de volume) cresceram em market share nesse período; Fiat (por causa da Jeep), VW, GM, Nissan e Hyundai.
Subsídios e carros elétricos
O setor automobilístico clama por competitividade, previsibilidade e redução do custo Brasil. Algumas operações, hoje, são dependentes dos subsídios para sobreviverem e as novas tecnologias também exigirão benefícios para serem competitivas no país. A principal delas é o Carro Elétrico. Em nenhum país do mundo, as vendas de carros elétricos decolaram sem fortes subsídios ou regulamentações que obriguem a substituição de motores a combustão por veículos puramente elétricos ou híbridos. No Brasil, obrigar, por lei, as montadoras a eliminarem as vendas de carros com motor a combustão, beira a irresponsabilidade e insanidade, uma vez que o setor representa mais de 20% do PIB industrial e o mercado não está preparado para essa mudança (e nem estará tão cedo).
As vendas de carros elétricos e híbridos representaram, em 2020, pouco menos de 1% de todas as vendas de carros e comerciais leves no país. É um mercado que não poderá contar com incentivos governamentais pelos próximos anos, pelas dificuldades que citei no início. É preciso esperar para conhecer a reação dos consumidores a essa nova tecnologia e o comportamento do mercado dos elétricos usados, mas esse segmento só decolará, de fato, a partir da introdução das baterias em estado sólido (SSB). Por enquanto, o negócio de carros elétricos no Brasil servirá como excelente propaganda de sustentação para a imagem de marca, mas não pagará a conta dos investimentos (dos fabricantes e dos consumidores).
Para finalizar, recomendo muito cuidado em interpretar e propagar notícias surpresas de investimentos bilionários no setor automotivo no Brasil, em especial, para veículos elétricos, principalmente de marcas desconhecidas. Muitos protocolos de intenção não passam de “balão de ensaio” para buscar investidores desavisados e conquistar benefícios fiscais e tributários regionais, que depois, na grande maioria dos casos, não se realizam. Note que, as próprias montadoras de peso, instaladas no Brasil, têm sido muito cautelosas ao anunciarem novos investimentos no setor, mas essas, quando anunciam, cumprem e as cifras são bem mais realistas.