Chega um ponto na vida de todo apaixonado por carro (leia-se gearhead no vocabulário dos mais jovens) que ele se depara com uma dúvida: me aventuro a comprar um carro bacana que um dia foi um carro impensável para o meu bolso e só fazia parte de meus sonhos ou deixo a razão falar mais alto e não me aventuro em possível enrascada?
Esta para mim é uma daquelas perguntas sem resposta única, tipo: Deus existe? Qual o sentido da vida? De onde viemos e para onde vamos? Eram os deuses astronautas??? Cada um acha uma coisa e como não temos como provar cientificamente, respeitamos todas as decisões e opiniões!
Mas vamos lá. A vida não deve ser feita apenas de prazeres, senão vamos à falência. Tampouco deve ser feita apenas de deveres, senão a gente enlouquece ou sofre demais e acaba tendo um infarto. Se tiver mais sorte, para antes no psiquiatra com uma depressão. Então, o equilíbrio deve ser buscado. Sempre.
Eu pessoalmente acho que todo mundo deveria, depois de feitas certas contas, se arriscar se tiver condições. Claro que não pode tirar recursos da escola dos filhos, moradia e etc. Mas afinal de contas, se sobrar uma graninha que não vai fazer falta, tá valendo.
Aí começa o sonho…
Como garantir que o sonho não vire um pesadelo?
Não existe 100% de garantia. Mas há modos para se mitigar este risco. Vamos falar de alguns deles.
Verificar o custo das peças de reposição. Mesmo que o seu resto de rico não quebre (o que é meio difícil), algumas peças de manutenção normais vão pesar. Comece olhando óleo. Já imaginou um motorzão que usa uns 8 litros de óleo sintético 0W20? Prepare-se para deixar quase 500 reais nessa brincadeira, que pode subir caso troque também o filtro.
E pastilhas de freio e discos? Verifique antes se não há similar nacional. Aqui muita gente vai torcer o nariz para as marcas nacionais, mas eu não acho crime não. Antes, tente dar um passe nos discos. Se não der, busque um nacional. Busque pastilhas nacionais se as importadas tiverem preço para você proibitivo, mas não pegue a mais barata. Mas faça tudo isso antes de comprar o veículo. Vale aqui buscar peças no eBay, etc. Lembre sempre que pneus, freios e amortecedores podem fazer a diferença entre você não bater ou sair ileso de uma batida. Então nada de gastar rios de dinheiro com som, couro e etc se a parte da segurança não estiver resolvida. Aqui, a pirâmide de Maslow fala mais alto. Segurança em primeiro lugar. Depois, guarde para mais itens de segurança no futuro. Deixe as firulas de lado. Seja racional no meio da loucura da aquisição e manutenção do seu “resto de rico” (RR).
Amortecedores: este é um ponto crucial. Ok, a gente não troca amortecedores todos os anos, mas uma vez vai ter que trocar. Um jogo de amortecedores de bolsa de ar + compressor se estiver ruim pode custar uns 20 mil reais. Mas existe gente que recondiciona até bolsa de ar. Não sei se existe gente que recondiciona compressor da suspensão. Deve existir. Em outra matéria, vamos falar sobre recondicionamento de amortecedores, uma questão pra lá de polêmica que vou abordar com isenção técnica e relação custo x benefício em mente.
+ Leia também:
9 truques que mostram se o carro teve a quilometragem adulterada
Será que carro elétrico polui menos do que carro flex?
13 mitos e verdades sobre os amortecedores e a suspensão dos veículos
O câmbio é um item que também merece bastante atenção. Dependendo do carro e do câmbio, pode inviabilizar a compra, pois a pancada será forte. Imagine um câmbio automático de uma Cayenne que deu defeito? Podem dizer: ah, mas a V6 tem o mesmo câmbio da Touareg. Isso não quer dizer que será barato, não. Já ouvi história de câmbio de Cayenne que custou mais de R$50.000 para arrumar… Como já ouvi dono de Cayenne antiga nunca reclamar de problema no câmbio.
Falando de powertrain, podemos citar diferencial e Haldex, peças típicas, por exemplo, de uma Volvo XC 60 ou Freelander 2. Estas peças podem (friso, podem e não há 100% de certeza) dar defeito. Vale a pena trocar na concessionária? Jamais. Nem passe perto pois o dinheiro pode misteriosamente sumir de sua carteira. Um diferencial traseiro recondicionado de FL2 sai por uns R$3.500 e o Haldex (peça que transfere o movimento entre o diferencial traseiro e dianteiro), um pouco menos. Na concessionária, mais que o dobro, no mínimo. Além de tudo, não faz o menor sentido jogar tudo fora. Basta trocar o jogo de engrenagens…
Aqui vale uma observação com relação à Freelander 2. Este é um carro bastante robusto, mas muito criticado e controverso. Relação de amor e ódio. Eu estou na segunda LR e amo. Tem gente que não quer nem de graça. O preço de compra dela é baixíssimo. Uma FL2 2008 sai por volta de R$34.OOO. Se pegar uma em ordem, com um ex-dono consciente e que não relaxou na manutenção, separe mais R$10.000 para uns acertos que precisar ou deixe pelo menos reservada essa quantia. A pergunta aqui é a seguinte: o que se compra com, digamos, R$45.000 – R$50.000? Nada que preste, na minha opinião personalíssima. Um Mobi ou Kwid? Jesus, afasta de mim esse cálice. Só se for para trabalhar. Mas eu prefiro o belo 6 cilindros em linha 3.2 com 232 cv, motor Ford super macio e suspensões tradicionais (sem bolsa), mas super confortáveis.
O Volvo XC 60, praticamente o mesmo carro que a FL2, tem um cuidado adicional. Antes de 2015, quando a Volvo era da Ford, a versão 2.0 turbo (T5) foi equipada com o péssimo câmbio Ford automatizado. A embreagem dura em média 60 mil km e custa a bagatela de 12k reais para ser trocada, fora da concessionária. Na autorizada custa mais de R$20.000. Uma das maiores vergonhas da engenharia e falta de respeito de uma marca com o consumidor. Para esse câmbio, a Ford, após ação na justiça, deu 10 anos de garantia. Era de se esperar o mesmo da Volvo, mas ela preferiu aqui no Brasil se esconder atrás de firulas jurídicas para não arcar com este custo. Para quem reclamava, oferecia 50% de desconto, caso o veículo tivesse até 5 anos de fabricação e 100% para até 2 anos (apenas fazer a troca na garantia). Pura enganação, pois fazia a preço quase de custo e não colocava a mão no bolso para resolver um absurdo de engenharia. Fuja então desta versão do Volvo XC 60 antes de 2015. Opte pelo T6, seis cilindros turbo que era equipado com um decente e honesto câmbio automático tradicional com conversor de torque…
De modo geral, não podemos nunca esquecer de algumas máximas na compra de um carro “resto de rico” (RR):
1) Carro não tem idade, tem dono. Um carro mal cuidado é um potencial mico;
2) Cavalo anda, cavalo bebe. Não adianta querer um V6 econômico. Isso não existe;
3) Galinha que acompanha pato morre afogada. Se você tem apenas, digamos, R$60.000, não compre uma Cayenne usada de 60 mil reais. Compre um carro de 40 mil reais e guarde, no mínimo, 50% do valor da aquisição para eventuais surpresas;
4) Não compre o carro por impulso. Pesquise, pesquise, pesquise. Faça uma inspeção de pré-compra para tentar evitar um infarto depois. De preferência, em oficina especializada na marca;
5) Fuja da concessionária, assim como o vampiro foge da luz. Busque oficina especializada, de preferência a mesma que te fez a pré-compra. Se não tiver na sua cidade, não seja cobaia. Coloque no guincho e mande para um lugar onde tenha a especializada e que você já conheceu o dono e local;
6) Outros donos podem te dar informações valiosíssimas. Busque fóruns e clubes da marca que você quer comprar. Já economizei muito fazendo isso;
7) Me mostre a unha que eu te digo qual é o dinossauro. Em outras palavras, atenção aos detalhes. Olhe a marca da bateria. A marca e estado dos pneus. O estado do reservatório de expansão do radiador e a cor do líquido. A marca da pastilha de freio. Um dono que economiza naquilo que a gente vê, é um péssimo sinal. Imagina naquilo que a gente não vê…
8) Carro alemão, terno italiano e perfume francês. Sei que muita gente vai me criticar por isso, mas é só uma brincadeira. Não troque a ordem. Pode dar muito problema. Terno alemão não funciona. Carro francês é delicado para o Brasil e o aftermarket é limitado. Carro italiano é só para apaixonados (categoria na qual me incluo). Eu prefiro, entre todos, a Mercedes. Fetiche de criança. Mas são os carros que melhor envelhecem. Não há discussão. Veja o interior de uma MB de 20 anos e o de uma BMW. Não há comparação. Possuo uma C240 2001. Blindada. Não faz um barulho. Coisa de louco. O couro parece zero. Só troquei peças de suspensão, por ser blindada. E recondicionei a caixa de direção, ao custo de R$1.900.
E a Cayenne que tanto eu citei? Volto ao item 3. Nesse nível, sou galinha master. E assustada. Não tenho coragem ainda. Mas sonho com uma Cayenne 2010, segunda geração, motor V6, suspensão tradicional. Ou com uma Mercedes C ou E, ambas AMG de mesmo ano. Mas aí a conversa é outra. E a emoção também. Por enquanto neste quesito deixo a razão decidir e não a emoção.
Por fim: se você realmente quer um incômodo, lembre-se sempre que peça de carro usado tem o mesmo preço de quando ele era novo. As peças de reposição de um Volvo com 10 anos são caras. Mas se você realmente for um gearhead de carteirinha, vai adorar essa aventura. Provavelmente quem não vai adorar isso é a sua esposa, caso você seja casado. Mas aí são outros quinhentos, não é verdade?