
GAC GS4 (Foto: Divulgação/GAC Motor)
Estudos recentes do BCG (Boston Consulting Group) indicam que os carros produzidos na China são baratos por nascerem sob um ambiente de produção de baixo custo. Não encontramos em nível global baterias e eletrônica produzidos de forma mais econômica num processo altamente verticalizado, com fornecedores integrados em fábricas novas e modernas, todos aliados a plataformas modulares com foco na otimização dos preços.
Por outro lado, as fabricantes de automóveis mais antigas, denominadas por tradicionais, estão travadas em fábricas antigas, contratos complexos, muitos fornecedores, falta de domínio pleno da cadeia da eletrificação e outros elementos que trazem, no fim, perda da competitividade na formação do preço do produto ensejando perda da eficiência. A solução para este problema não é simples. Recentemente escrevi que uma reengenharia traria apenas ganhos marginais numa operação (3 a 7%) e que a mudança necessária ensejaria investimentos monstruosos, hoje não disponíveis pois o dinheiro disponível está caro não apenas para o Brasil.
Além disto os tempos são outros. Antigamente preço baixo era um sinônimo de corte de quantidade nos equipamentos ou má qualidade dos itens do veículo. Nos anos 1990 o Brasil teve que incluir uma regulamentação mínima para incluir espelho retrovisor no lado do passageiro ou ao menos uma luz de marcha a ré. As empresas abusavam mesmo! Para aumentar o lucro, o acabamento interno dos veículos de entrada e intermediários era espartano com o uso abusivo de plástico e uma simplicidade que por vezes beirava o absurdo. Enquanto veículos de entrada possuíam espelhos retrovisores com regulagem externa, suas versões mais elegantes possuíam regulagem do espelho do passageiro elétrico e algumas vezes o do motorista, mais perto, o ajuste era interno, mas manual. Só quem viveu esta época sabe o que estou falando!
Hoje, mesmo os veículos mais simples de fabricação nacional possuem “trio elétrico” (vidros, espelhos e travas), ar-condicionado de série e tantos outros equipamentos incluídos por força de lei como ABS, airbags, entre outros.
Sempre convido o leitor a fechar os olhos num veículo produzido no início dos anos 2000, ver o painel deste veículo e abrir novamente os olhos hoje. A diferença é monstruosa, mas a diferenciação na qualidade do material interno entre uma versão de entrada e uma versão superior ainda é gritante.
Entretanto, os veículos chineses conseguiram virar esta chave. Chegam ainda mais completos pelo mesmo preço ou por preços menores do que os similares nacionais. E não foi mágica, foi resultado de um trabalho orientado e de um planejamento de longo prazo. Hoje a indústria automobilística chinesa possui identidade, qualidade e tecnologia. O governo daquele país desenvolveu a infraestrutura, a logística, investiu em educação e na indústria; e tal envolvimento governamental não pode ser visto como um problema.
Todos os mercados que tiveram desenvolvimento de seu parque fabril automobilístico, em nível mundial, tiveram envolvimento direto dos seus governos em investimentos e planejamento de forma explícita nesta indústria.
Retornando à China, decisões político-governamentais nos últimos 25 anos direcionaram o país a ser a potência que é hoje. Decisões industriais, regulatórias, políticas públicas e estratégias comerciais, isoladas ou em conjunto, desenvolveram o potencial da indústria e diminuíram os custos da base da cadeia produtiva.
A começar pelo processo de eletrificação, especificamente pela bateria, que é o item mais representativo na formação do preço de um veículo elétrico. A bateria apresentou notória redução de preço do KW·h ,em nível mundial, ao longo dos últimos anos. Entre 2008 e 2023 o preço do quilowatt·hora (kW·h) despencou cerca de 90%, de US$ 1.400 para US$ 140 (e hoje já está menor). Além disso, a indústria chinesa foi pioneira na massificação do uso de baterias e atualmente detém de forma única alguns dos processos mais relevantes na tecnologia das baterias de íons de lítio. Redução do custo por kW·h, escala e tecnologia formam uma equação difícil de ser superada por qualquer fabricante ocidental.
Outro fator determinante é a verticalização da indústria e dos ecossistemas vinculados a ela. Enquanto o modelo tradicional depende de uma rede complexa de fornecedores independentes, os grupos chineses integram quase todos os processos internamente, desde a célula da bateria, passando pela eletrônica embarcada e chegando até o desenvolvimento do software. Este processo produtivo deixa menos intermediários, produz menos logística, causa menos variação no preço e, por fim, reduz custos.
As novas e modernas fábricas, construídas especificamente para as plataformas modulares numa indústria verticalizada com alto grau de automação, conseguem produzir mais por um menor custo. Fábricas antigas (tradicionais), pelo próprio tempo de uso, exigem maior manutenção e a adaptação à nova realidade do mercado enseja investimentos que, no fim, elevam os custos de produção. Modernizar uma unidade fabril não é simples, rápido ou muito menos baratom sendo este um dos principais entraves da competitividade da indústria tradicional.
O posicionamento de preço altamente competitivo é outro ponto relevante; a variedade de produtos chineses é relativamente pequena e os veículos já saem de fábrica bem equipados. Produzir diferentes versões onera o custo unitário por aumentar a complexidade da produção. A indústria tradicional já se movimentou nos últimos 15 anos neste sentido enxugando a oferta de opcionais nos veículos aqui produzidos, mas, de qualquer forma, a indústria chinesa parecer ser insuperável neste quesito oferecendo produtos extremamente bem equipados a baixos custos.
Passado de baixa qualidade
E a percepção do consumidor se alterou. Era comum observarmos veículos chineses 10 ou 15 anos atrás sendo carregados de equipamentos de série pois numa mesma faixa de preços e equipamentos, o consumidor da época tinha nítida preferência pelos veículos aqui produzidos ou importados de outros países mais tradicionais. Os veículos chineses não eram nada competitivos e carregavam o estigma de uma indústria de baixa qualidade.
Lá por volta de 2012, lembro que uma marca trazia um veículo chinês com sua publicidade sendo praticada pelo Fausto Silva, em horário nobre na TV aberta. Seus veículos eram altamente equipados para competir com veículos de entrada aqui produzidos, com ABS, airbags, ar-condicionado, entre tantos outros equipamentos não presentes nos carros de entrada daquela época (hoje alguns equipamentos são obrigatórios por força de lei). Esta marca causou muito barulho, inclusive ensejando reuniões às pressas a pedido da assustada concorrência, mas ainda enfrentava problemas de imagem e qualidade em algumas áreas como a história do pedal de freio que entortou num teste com jornalistas aqui no Brasil. Absolutamente nada com quem operava a marca aqui, mas retratava as questões da indústria chinesa daquela época que ainda estava muito vinculada à imagem do país do R$ 1,99 da década de 1990 (para quem não sabe, este era o preço dos produtos em lojas de especialidades chinesas de produtos de baixíssima qualidade). Tal erro de projeto foi rapidamente corrigido, mas pegou mal.
Para dar ênfase à história do imaginário da falta de qualidade dos veículos naquela época, sempre me recordo da seguinte história: no dia reservado aos convidados e jornalistas no Salão do Automóvel de 2012, a Lifan (falida em 2020) apresentava um sedã médio denominado 620. Com o capô do motor aberto, um convidado fez um movimento axial (horizontal) bruto na estrutura do radiador na expectativa de que “vai que quebra”… Esta mesma pessoa, no estande da Lamborghini, passava carinhosamente seu dedo indicador no aerofólio traseiro do carro quase que demonstrando o mesmo toque de carinho nos cabelos de sua namorada… Mesma pessoa, dois carros e duas medidas.
Conclusão
Bem, a receita era simples. O cliente tinha a percepção de um veículo completo por um preço competitivo. A empresa, pelo lado da engenharia, um processo produtivo mais simples e com menos elementos, e pela ótica financeira uma possibilidade de maiores lucros. É uma receita que dura até hoje por diferentes motivos. Hoje é simplesmente pela otimização dos custos já que a qualidade dos produtos e a imagem da indústria chinesa está posicionada em níveis superiores.
Por fim e não menos importante, as empresas chinesas não vieram para brincar.
Acostumadas a margens conservadoras e certo domínio do mercado, a indústria tradicional se viu repentinamente ameaçada por esta nova indústria, em especial para o mercado de carros e comerciais leves eletrificados (por enquanto) que tem por foco margens menores e volume.
A confiança do consumidor nas marcas chinesas ainda está apenas no início e este processo não é passageiro e muito menos simples. Passa obrigatoriamente por outras fases como a consolidação da rede de concessionárias, fornecimento de peças, oferecimento de serviços com qualidade e agilidade, atendimento ao consumidor, respeito às leis brasileiras, entre outras. Todos estes fatores serão determinantes no resultado final da aceitação pelo cliente e credibilidade da marca que passam também pelo valor residual e custos de manutenção, fatores determinantes para que um veículo ou uma marca não caia em desgraça.
Hoje a indústria chinesa é respeitada e tem uma participação de mercado entre os veículos de passeio próxima a 10% podendo facilmente aumentar esta participação para 15% no curto prazo (3 anos).
Em suma, nos últimos 15 anos a indústria automobilística chinesa renasce para ser uma indústria tecnológica, eletrificada ou não, com design próprio, trazendo inovação de ponta e, principalmente, por se utilizando de produtos acessíveis e competitivos para competir diretamente com a indústria tradicional.
