
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Fabricantes de veículos sempre manobraram para obter benefícios do governo e fechar o mercado a possíveis concorrentes
Causou indignada e justa reação na indústria automotiva instalada no País o tom jocosamente beligerante e birrento adotado pela BYD contra fabricantes afiliados à Anfavea que pressionaram o governo federal – e conseguiram – para barrar o pleito de reduzir o imposto de importação sobre veículos elétricos e híbridos desmontados, para serem finalizados pela montadora chinesa em sua fábrica ainda não inaugurada de Camaçari, BA, tudo sem nenhum desenvolvimento local nem a compra de componentes nacionais.
Em comunicado distribuído à imprensa e publicado em redes sociais, sem modéstia, a BYD se autodenominou “meteoro” que veio incomodar “dinossauros” – no caso, é como a montadora chinesa identifica os fabricantes de veículos instalados no País que, segundo ela, “durante décadas” se apropriaram do mercado brasileiro com produtos caros, com “tecnologia velha e design preguiçoso”.
Seria, portanto, algo muito parecido com o que havia na China há menos de dez anos, quando as empresas chinesas ainda aprendiam com os fabricantes ocidentais a fazer veículos por meio de associações, joint ventures, ou contratação de profissionais do Ocidente, para promover o avanço de uma indústria que também podia ser considerada bastante jurássica, mas em vez de destrutivos meteoros adotou uma política industrial assertiva para se desenvolver, com muita ajuda e subsídios do governo chinês.
Na visão da BYD, diante da ameaça de concorrência mais competitiva, os fabricantes no Brasil estariam pressionando o governo contra a chegada de um concorrente mais competitivo por meio de “uma espécie de chantagem emocional com verniz corporativo, repetida há décadas pelos barões da indústria para proteger um modelo de negócio que deixou o consumidor brasileiro como último da fila da modernidade”.
No entendimento da BYD, portanto, a modernidade chega por meio de importações que podem substituir a produção nacional sem implicações – algo que o governo chinês jamais permitiu que acontecesse em seu próprio território.
Pressão contrária
A figuração jurássica, usada pela BYD para denotar o suposto atraso dos fabricantes instalados no País diante da imodesta modernidade dela própria, foi uma reação às pressões da Anfavea e de seus associados junto ao governo para barrar as pretensões da montadora chinesa para importar kits de carros semidesmontados com redução de tarifas.
Quatro dos maiores fabricantes do País, pela ordem Stellantis, Volkswagen, General Motors e Toyota, que juntos dominam 65% das vendas de veículos no mercado brasileiro, um dia antes do comunicado-meteoro da BYD divulgaram carta aberta, assinada pelos presidentes das empresas, enviada ao presidente da República, na qual faziam ameaças tácitas de rever investimentos anunciados no País caso o pleito da redução do imposto de importação fosse atendido.
Sindipeças, que reúne os fornecedores de componentes, e a AEA, Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, também divulgaram comunicados em defesa da indústria nacional que seria seriamente prejudicada pelas importações.
Note-se que tal defesa da indústria nacional é feita por empresas multinacionais estrangeiras que, exatamente como a BYD, remetem lucros nunca divulgados às matrizes no Exterior e sempre tiveram no governo federal um aliado histórico que concede incentivos e fecha o mercado às importações de veículos.
Todos querem incentivos
Ingenuidades à parte, todos querem a mesma coisa: benefícios e proteção contra a concorrência que venha de fora do clube das montadoras instaladas no País, para lucrar mais com o menor gasto possível. Quando e se a BYD entrar neste mesmo clube deverá adotar as mesmas práticas jurássicas protecionistas em troca dos investimentos que diz fazer no Brasil.
A história mostra que sempre foi assim desde os primórdios desta indústria em território nacional e nada indica que houve alguma mudança nisto: sem incentivos a indústria estrangeira não vem nem investe e sem regras de nacionalização e proteção do mercado ninguém quer fabricar nada aqui, pois o País não é competitivo no cenário internacional e precisa compensar esta falta de competitividade com benefícios ao setor.
Ao mesmo tempo, é bom que se diga, tais incentivos são fundamentais para atrair e manter esta indústria no País, porque trata-se de um setor que, quando se instala de fato com suas fábricas, promove desenvolvimento econômico e social. A questão é saber dosar benefícios na proporção exata dos retornos recebidos.
Ironias, chantagens e blefes
Interessante notar que as empresas que rogam ao governo para barrar incentivos à BYD, porque segundo estes fabricantes isto causaria uma concorrência desleal, são as mesmas que já receberam e ainda recebem generosos incentivos para produzir aqui.
Mais interessante ainda – e irônico – notar que uma das quatro empresas que assina a carta ao presidente Lula, a Stellantis, há menos de dois anos estava contra as outras três, pois com justiça defendia os incentivos fiscais do Regime Nordeste que recebe em sua fábrica de Pernambuco – que aliás são os mesmos que a BYD receberá para produzir na Bahia.
Na época, no segundo semestre de 2023, quando se discutia a extensão dos estímulos fiscais do Regime Nordeste até 2032, beneficiando justamente Stellantis e BYD, as outras três signatárias da recente carta a Lula, GM, Volkswagen e Toyota, fizeram oposição aberta à renovação, causando um racha na Anfavea.
As três até pagaram por um vistoso anúncio nos principais jornais do País afirmando que caso o benefício fosse estendido colocaria investimentos em risco – chantagem que acabou se configurando em mais um blefe, dado que o incentivo do Regime Nordeste até 2032 foi encampado na reforma tributária aprovada no início de 2024, e mesmo assim investimentos bilionários foram anunciados.
O passar do tempo acomodou interesses antes conflitantes e hoje a Stellantis está na mesma trincheira com as outras três concorrentes. Mas, é preciso reconhecer, o modelo de produção adotado na fábrica de Pernambuco é bastante diferente do proposto pela BYD na Bahia, pois desde o primeiro dia de operação, há dez anos, a fábrica pernambucana adota processos produtivos completos e instalou uma dúzia de fornecedores em seu parque fabril, além de outros que continuam a chegar.
Ameaça aos investimentos
Chantagens e blefes são iguais, tanto daqueles que já estão no clube dos fabricantes nacionais da Anfavea quanto daqueles que ainda não estão nele: ainda que com palavras medidas e diplomáticas, caso o interesse não seja atendido a ameaça é sempre a de demissões e revisões de investimentos que, diga-se, nunca são auditados.
Nem é necessária a chegada de um concorrente dito desleal para que investimentos sejam adiados ou cancelados, basta qualquer retração do mercado e os planos são engavetados sem necessidade de esclarecimentos, raramente esse tipo de ação é divulgada.
As empresas anunciam aportes bilionários mas nunca se sabe se eles foram, de fato, aplicados nas cifras anunciadas e no período programado, inexiste qualquer divulgação sobre isto e nem há qualquer controle do governo nesse sentido, pois não há transparência financeira, as empresas estrangeiras sequer são obrigadas a publicar balanços no País – lucros ou prejuízos sempre ficam escondidos atrás de balanços globais e no discurso de executivos.
As quatro grandes fabricantes signatárias da carta ao presidente Lula afirmam que a indústria automotiva tem investimentos planejados de R$ 180 bilhões, sendo R$ 130 bilhões das montadoras e outros R$ 50 bilhões dos fornecedores de componentes. Seriam esses justamente os aportes sob ameaça caso fosse atendido o pleito da BYD de importar carros desmontados com redução tarifária.
Embora sejam números não auditados é possível dizer que estão inflados: basta fazer as contas de todos os aportes anunciados para concluir que, no mínimo, R$ 20 bilhões são de programas anteriores de investimentos e já teriam sido gastos, portanto não podem mais ser revistos.
Outra ironia aqui: a BYD participa com R$ 5,5 bilhões dos investimentos informados pela Anfavea, e também veicula que seu investimento está em risco se o seu pleito não for atendido.
Justamente no dia que a carta das quatro foi divulgada, em 29 de julho, em entrevista à Folha de S.Paulo o vice-presidente da BYD no Brasil, Alexandre Baldy, afirmou que a empresa já investiu R$ 2 bilhões no País e sem a redução do imposto de importação “não teremos como fabricar”. Como se sabe a BYD não foi atendida e até o momento não houve nenhum pronunciamento sobre se a ameaça de suspender os planos para o Brasil será cumprida ou não.
Forçando a amizade
O pleito da BYD, segundo carta enviada ao MDIC, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, à qual AutoData teve acesso e publicou seu conteúdo em abril passado, era de reduzir, por três anos, dos atuais 28% e 25% para 10% a tarifa de importação de kits SKD, carros semimontados, respectivamente de modelos híbridos plug-in e elétricos, e de 14% e 10% para apenas 5% a alíquota de kits CKD, veículos totalmente desmontados.
A BYD alega que, por contrato com o governo da Bahia que concedeu à empresa os mesmo benefícios que eram dados à Ford – o principal seria a redução de 95% do ICMS –, já está prevista a migração do processo de montagem simples para o início da industrialização, com componentes nacionais, a partir de julho de 2026, mas nada se sabe sobre quais itens seriam comprados no Brasil nem os prazos desta nacionalização, visto que, de início, até os pneus seriam importados, mesmo com três fábricas de grandes fornecedores na Bahia, dois deles bem ao lado em Camaçari.
O fato é que quando foi firmado o acordo com os governos federal e estadual, para receber todos os incentivos fiscais, a BYD sabia dos impostos cobrados sobre kits importados SKD e CKD e nada disse sobre a necessidade de redução destas tarifas para tornar sua operação viável. O pedido de redução excepcional do imposto de importação só foi enviado ao MDIC no fim de 2024, ou dois anos depois de a BYD anunciar que se instalaria na Bahia para produzir modelos híbridos e elétricos com índices crescentes de nacionalização.
O fato é que a BYD esticou demais a corda, forçou a amizade, e o governo não teria como atender o pedido, mesmo porque a montadora não cumpriu boa parte das promessas que fez até agora: como por exemplo a de iniciar a produção em Camaçari no fim de 2024, que foi adiada para março de 2025 e, mais recentemente, para julho, o que também não se cumpriu, ou de contratar 10 mil pessoas até este mês de agosto, ou de construir 28 novos prédios no terreno da fábrica.
Até o momento a chinesa gastou mais de R$ 11 bilhões – mais que o dobro do investimento anunciado em produção nacional – somente para importar veículos e formar estoques de dezenas de milhares de carros no País, desovados com altos descontos que distorcem o mercado.
Assim, em vez de reduzir as tarifas, a Camex manteve a retomada da alíquota de 35% para veículos semimontados importados, kits SKD, fixada para julho de 2026 – mesma data em que o imposto de 35% será retomado para todos os carros híbridos e elétricos importados. Ao mesmo tempo, para kits desmontados CKD a tarifa de 35% foi antecipada de julho de 2028 para janeiro de 2027, até lá com a concessão de cotas isentas no total de US$ 453 milhões a serem divididos pelos importadores.
Certamente os “dinossauros” ficaram felizes em não ter de rever os investimentos que dizem fazer, enquanto o “meteoro” ainda precisa mostrar, de fato, a que veio – e talvez até venha a fazer amizade com os animais que iria extinguir.