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Plano de zerar o IPI de veículos mais baratos passa longe de popularizar acesso ao veículo zero-quilômetro
Já esperando as pedradas pela citação: “A história se repete como farsa”, escreveu Karl Marx em O 18 de Brumário, ainda em meados do século 19. Pois o conceito é análogo à pretensa recriação do carro popular no Brasil, com isenção de IPI para os mais baratos, desde que 100% produzidos no País, mais recicláveis e econômicos no consumo e nas emissões de CO2.
Aquele que está sendo chamado pelo governo e pela indústria de “carro sustentável” se enquadra nestes critérios para redução do imposto, segundo consta em uma minuta de portaria do MDIC – à qual a Agência AutoData teve acesso no fim de junho – que instituiria o chamado IPI Verde, que reduz taxação de carros ambientalmente mais sustentáveis e pune os menos, conforme ficou estipulado na lei que criou o Mover, Programa Mobilidade Verde e Inovação, no início de 2024.
A iniciativa é defensável mas nada tem de popular, dificilmente promoverá a popularização do acesso ao carro zero-quilômetro, como ocorreu no fim dos anos 1990 e na primeira década deste século 21, quando toscos modelos 1.0 chegaram a representar de 60% a quase 70% das vendas no País.
O IPI sobre estes carros partiu de 0,1% só no primeiro ano, em 1993, subiu depois a 8% e a 10% nos anos seguintes e ficou estabilizado em 7% desde 2004, com reduções que variaram de zero, 5%, 3% a 2% para driblar crises econômicas de 2008 a 2014. Mais recentemente, em 2022, houve novo corte para 5,27%, o nível atual, que cairia para zero para modelos dentro dos padrões determinados pelo governo na portaria.
Alcance limitado
As condições atuais de mercado de hoje são bastante diferentes dos anos de grandes vendas de carros populares: em primeiro lugar porque caiu muito o número de modelos 1.0 que poderiam ser taxados como populares, enquanto a diferença do IPI para outras opções mais potentes também caiu muito.
Atualmente os modelos 1.0 representam 53% das vendas, mas algo como 30% deles são equipados com motores turboflex que, embora também gozem de IPI menor, custam todos acima de R$ 100 mil e não se encaixariam nos padrões para a zeragem do imposto, que atingiria somente as versões mais baratas.
Questão não menos importante são preços e juros nas alturas. Os carros 1.0 mais baratos do mercado em nada se comparam aos toscos modelos vendidos dez anos atrás, uma das razões para que um carro de entrada, hoje, tenha preços de tabela que começam em R$ 80 mil e chegam perto de R$ 100 mil.
Renault Kwid Zen (Foto: Rodolfo Buhrer/La Imagem/Renault)
Por exemplo, o Renault Kwid mais barato, versão Zen, está tabelado em R$ 80,7 mil, e neste preço está incluso sistema start-stop, freios com ABS, controle eletrônico de estabilidade e tração, monitor de pressão dos pneus, luzes de condução diurna, ar-condicionado e direção assistida elétrica.
Nenhum destes itens fazia parte do cardápio de série de um carro popular nos anos 2000, porque ao contrário do que acontece hoje a legislação não obrigava, não havia incentivos do governo para adoção de alguns sistemas de segurança e redução de consumo, nem o consumidor exigia certos confortos. Todas estas três condições estão presentes atualmente, fazendo do carro popular do passado algo impossível de ser recriado.
Não cabe no bolso
Os juros no patamar atual não ajudam a suavizar os preços elevados em prestações que cabem no bolso do consumidor.
Outro exemplo: em 2010, ano em que foram vendidos 2,8 milhões de automóveis, 49% deles 1.0, um Fiat Uno custava R$ 22,9 mil e, com 20% de entrada e taxa de 1,27% ao mês, podia ser pago em 36 parcelas mensais de R$ 638, valor que comprometia 25% das receitas de quem recebia cinco salários mínimos, ou R$ 2,5 mil.
Fazendo o tempo correr quinze anos, para junho de 2025, é até difícil encontrar planos de financiamento com entrada de 20%, mas apenas para fazer a comparação de comprometimento da renda, tomando-se como exemplo o carro mais barato do País, o Renault Kwid Zen de R$ 80,7 mil, com o juro atual na casa de 2% ao mês as prestações sobem para incríveis 36 parcelas de R$ 2,5 mil, o que compromete um terço da renda de quem ganha cinco salários mínimos hoje, perto de R$ 7,6 mil.
Neste exemplo o consumidor pagaria R$ 67 mil só de juros nos três anos do financiamento, mais que o dobro do valor financiado.
Ou seja: preços e financiamentos não cabem mais no bolso dos consumidores a quem os carros mais baratos deveriam ser direcionados.
A redução a zero do IPI dos carros mais baratos do mercado também não ajudaria muito, pois poderia reduzir o preço final em cerca de 5% – poderia porque não se sabe se os fabricantes seriam, de fato, obrigados a reduzir os preços ou embolsariam a diferença aumentando a margem de lucro.
Outro fato esquecido é que muitos fabricantes, por terem atingido metas de eficiência energética e adoção de sistemas de segurança que foram prescritos pelos programas Inovar-Auto e Rota 2030, já ganharam direito a descontos de IPI, portanto já estariam recolhendo menos do que prescrevem as alíquotas atuais, mas nem por isto repassam tais ganhos aos preços.
Sem nenhuma redução de IPI os fabricantes já dão descontos maiores por meio do faturamento direto ao cliente, seja ele pessoa física ou uma empresa. No site da Fiat o Mobi mais barato, versão Like, de R$ 81 mil sai por R$ 70 mil no Programa Acesse Fiat. O desconto de R$ 11 mil no preço com IPI atual a 5,27% é mais que o dobro da redução de R$ 4 mil que viria com o IPI zerado.
Não é à toa que, no primeiro semestre deste ano, quase 94% das vendas somadas de Fiat Mobi e Renault Kwid foram feitas por faturamento direto da fábrica ao cliente final, para tornar o produto mais barato ao eliminar os impostos que seriam cobrados no faturamento à concessionária e depois ao consumidor.
Além de empresas e grandes frotistas, como locadoras, pessoas físicas também estão comprando carros por faturamento direto, para pagar menos, por isto o canal conhecido como venda direta, no primeiro semestre, correspondeu à metade das vendas de veículos no País – o maior porcentual registrado nos últimos anos.
A conclusão é que, caso o IPI seja de fato zerado para alguns carros, caberia ao governo obrigar os fabricantes a dar como contrapartida descontos maiores nos preços, acima da redução do imposto, pois as empresas já estão fazendo isto.
Poucos modelos beneficiados
VW Polo Track (Foto: Divulgação/VW)
Ao contrário do que ocorreu nas primeiras duas décadas dos anos 2000, desta vez não seriam muitos os modelos beneficiados pelo possível corte de imposto. Os seis modelos hatchback mais vendidos do mercado, que têm versões com motor 1.0 aspirados que poderiam ter o IPI zerado, juntos registraram 232,5 mil emplacamentos no primeiro semestre, o equivalente a 20,5% do total de 1,1 milhão de veículos leves emplacados no período.
Pela ordem são eles: Volkswagen Polo Track, Fiat Argo, Hyundai HB20, Chevrolet Onix, Fiat Mobi e Renault Kwid. Isto mesmo: os dois carros mais baratos do mercado são atualmente os menos vendidos na lista dos seis mais. E fora estes dois estão contabilizadas todas as versões dos demais, incluindo algumas com motores turboflex, o que puxa os números para cima.
As vendas diretas destes modelos são altas, somaram 161,2 mil unidades no primeiro semestre, ou 69,3% dos emplacamentos dos seis, porcentual bastante acima dos 50,3% do mercado total.
O porcentual de vendas diretas de cada um destes seis no semestre é liderado por Mobi e Kwid, com 93,8%, seguido por Argo com 74,4%, Polo com 63,1%, HB20 com 56,7% e Onix com 44,3%.
Estes índices indicam que todos estes carros já estão sendo vendidos por preços abaixo da tabela e, portanto, os maiores beneficiários de uma possível redução do IPI seriam pessoas jurídicas, empresas e locadoras que compram esses veículos por faturamento direto já com descontos generosos.
Algumas pessoas familiarizadas com as negociações em torno do IPI Verde esperavam que a portaria fosse publicada na semana passada. Não aconteceu. Desconfia-se que a legislação não é do interesse de todos os fabricantes nem da Fazenda, que encontra dificuldades em fechar as contas públicas.
No cenário atual será difícil ao governo justificar qualquer corte de imposto sem a devida compensação, o que poderá onerar ainda mais carros de preços e tecnologia superiores. Seria um efeito colateral que tornaria produtos melhores ainda mais distantes da maioria da população, em benefício de alguns dos piores carros mais caros do mundo, que só podem ser chamados de populares para construir uma farsa histórica.