Foto: Reprodução/Global Times/VCG
Quase 80% dos veículos chineses exportados têm só motor a combustão, mas modelos eletrificados estão crescendo
Em 2014 a China garantiu o título de maior exportador de veículos do mundo, ultrapassando Japão e Alemanha ao embarcar 4,7 milhões de automóveis a outros países – volume três vezes maior do que o registrado há apenas três anos e que, segundo recente estudo do Citigroup, em 2030 deverá chegar a 7,3 milhões.
Mas ao contrário do que possa fazer parecer o grande número de modelos híbridos e elétricos produzidos por fabricantes chineses, o grosso é vendido no próprio mercado chinês. São os carros equipados só com motor a gasolina os responsáveis por quase 80% das exportações do país, ao menos por enquanto.
Para além da própria China, de longe o maior mercado de veículos eletrificados, que concentra 67% das vendas globais de híbridos e elétricos, com quase 11 milhões de unidades registradas no ano passado, estes carros encontram barreiras tarifárias e culturais nos países ricos da Europa, os Estados Unidos, o Japão e a Coreia. Assim sobra o resto do mundo para os fabricantes chineses, principalmente mercados que consomem mais carros a combustão porque a eletrificação encontra limites estruturais e de renda para avançar mais rápido.
Mas este resto do mundo é bastante relevante. Ainda que sejam mercados menores a soma desses países na América Latina, África, Oriente Médio e Sudeste Asiático representa vendas de cerca de 20 milhões de veículos/ano.
Além disso são mercados que, ao contrário das nações ricas e da própria China, estão crescendo e são tão ou mais lucrativos, ao passo que têm tarifas de importação menores ou até inexistentes, bem como legislação de emissões e de segurança mais lenientes, facilitando a entrada de carros mais baratos e menos sofisticados.
De dentro para fora
O empoderamento internacional dos fabricantes de veículos da China é recente, reflete mudanças substanciais do mercado interno e oportunidades externas surgidas nos últimos anos.
Primeiro os chineses venceram dentro de casa as grandes corporações estrangeiras que, a partir dos anos 2000, chegaram em massa ao país para produzir em sociedades meio a meio com companhias estatais. Há cerca de dez anos as marcas tradicionais do setor automotivo global, Volkswagen e GM à frente, dominavam 80% das vendas. Hoje o quadro se inverteu: as marcas chinesas têm mais de 60% do mercado chinês de veículos, com BYD na liderança.
Foto: Divulgação/BYD
Esta virada no mercado doméstico não veio sem custos: a capacidade de produção do país, estimada hoje em 45 milhões de veículos/ano, cresceu demais e acima da demanda, que em 2024 ficou estagnada em 31,4 milhões de unidades, ocupando menos de 70% do potencial produtivo das fábricas.
Apesar de ser, por larga margem, o maior mercado de veículos do planeta, a China não consegue mais consumir tudo que produz, principalmente após o crescimento dos volumes dos fabricantes de marcas nacionais. Para compensar ao menos parte da imensa ociosidade, a saída, estimulada por incentivos e diretrizes do governo, foi aumentar as exportações.
Justamente neste momento histórico muitos mercados externos abriram espaços que foram ocupados pelos chineses. A crise da falta de chips eletrônicos, em 2021 e 2022, obrigou os fabricantes ocidentais a concentrar a produção nos veículos mais caros e rentáveis, o que deixou caminho livre para modelos mais baratos vindos da China.
Com este movimento a participação em outros mercados de veículos produzidos na China, que antes da pandemia de covid era quase zero, saltou em 2024 para 8% na África e Oriente Médio, 6% na América do Sul, 4% no Sudeste Asiático e relevantes 5% no conjunto de 28 países da Europa, para os quais a China, no ano passado, foi o sexto maior fornecedor de veículos e o maior deles fora do próprio continente, com cerca de 600 mil automóveis registrados, número acima de fornecedores como Turquia, Japão e Reino Unido.
Outra oportunidade foi a Rússia, que passou a ser o maior mercado externo de carros da China, a grande maioria só com motor a gasolina. Há três anos, depois da eclosão da guerra com a Ucrânia e do consequente êxodo de fabricantes europeus, a participação dos veículos chineses no mercado russo saltou de 9% em 2021 para 61% em 2023.
Mercado externo mais lucrativo
Enquanto a porta parece ter sido definitivamente trancada nos Estados Unidos com imposto de importação de 100% a veículos chineses, as tarifas adotadas pela União Europeia e a própria Rússia – que instituiu uma taxação de reciclagem para proteger o que restou de sua própria indústria – têm poder limitado de barrar fabricantes da China, que dominam toda a cadeia produtiva, têm os custos de produção mais baixos do mundo e encontraram no Exterior margens de lucro de 5 a 10 pontos porcentuais mais altas do que no seu próprio mercado interno.
Um exemplo: o elétrico BYD Dolphin é vendido na China por 99,8 mil yuans, o equivalente a US$ 12,6 mil, enquanto no Reino Unidos este valor é quase três vezes maior, chega a US$ 33 mil, mas lá é um carro considerado barato. Uma análise da consultoria Rhodium Group calcula que a BYD poderia cortar os seus preços em 30% na Europa e, ainda assim, teria o mesmo lucro que obtém na China.
BYD Dolphin (Foto: Divulgação/BYD)
No Brasil a lógica parece ser a mesma, pois mesmo após dois aumentos do imposto de importação sobre elétricos e híbridos, o Dolphin 2025 vendido com reajuste de R$ 10 mil, por R$ 159,8 mil, ou US$ 28 mil pela cotação desta semana, também apresenta margem folgada em relação à que o fabricante tem em seu país de origem.
China eletrifica emergentes
Ainda que seja mais lenta a penetração de carros eletrificados nos mercados em que os fabricantes da China têm seu melhor desempenho, as vendas externas de modelos chineses elétricos e híbridos – e principalmente destes últimos – também estão em franca expansão. Ainda segundo o estudo do Citigroup, a estimativa é que os automóveis eletrificados vão aumentar sua representatividade nas exportações do país dos atuais 20% para 75% até 2030.
Esta presença mais marcante já acontece em alguns países como o Brasil, sexto maior mercado de veículos do mundo, no qual os carros elétricos e híbridos representam 7% das vendas e de cada dez modelos a bateria vendidos nove são provenientes da China.
Outros emergentes importantes também estão avançando na eletrificação, que já representa 6% dos automóveis comercializados na América Latina, 8% no México e 15% na Tailândia. São proporções em linha ou até maiores do que o de algumas nações ricas, como os Estados Unidos, onde 8% dos registros em 2024 foram de automóveis elétricos.
Mesmo na Europa, que está levantando barreiras tarifárias aos carros eletrificados da China, a proporção de modelos elétricos chineses, que era de 4% do mercado em 2021, saltou para 10% em 2024 e, a partir de agora, deverá crescer mais lentamente, não passando de 11%, segundo análise da Schmidt Automotive Research.
Mas é interessante notar que mesmo fabricantes europeus estão importando da China muitos modelos de marcas europeias. Em 2024 os chineses mais vendidos no continente foram da SAIC Motor, com a marca inglesa MG, da Geely, que é dona da sueca Volvo, e do Grupo BMW, que traz aos mercados europeus veículos produzidos em suas fábricas chinesas. Também foram bem vendidos aos europeus carros da BYD e Chery.
Fábricas em todos os cantos
Não são só carros prontos que navios da China trazem a novos mercados externos, mas também muitos partes de veículos desmontados ou semidesmontados. É assim, com linhas de montagem no Exterior, que os chineses tentam driblar as crescentes barreiras tarifárias.
A BYD é uma das pioneiras dessa estratégia: já tem linhas de montagem em operação na Tailândia e no Uzbequistão e está construindo novas na Hungria, Indonésia, Turquia, no México e também no Brasil, em Camaçari, BA, no mesmo terreno em que operou a Ford até 2021. Chery, Changan, GAC, Great Wall, Geely e SAIC também têm fábricas em construção no Exterior – e o Brasil está nos planos da maioria delas.
Foto: Divulgação/GWM
Ainda segundo o estudo do Citigroup, espera-se que até 2030 os fabricantes da China vão produzir 2,5 milhões de veículos fora de seu país de origem, 50% deles na Europa e o restante em países emergentes.
Mas que não se espere muita coisa além de linhas de montagem com partes importadas. Alguns fornecedores de componentes no Brasil relatam que, até o momento, fabricantes chineses que estão chegando ao País pouco ou nada conversaram sobre a nacionalização do fornecimento de peças. Pelos próximos três anos o plano seria só de montar carros com 100% de peças importadas das matrizes.
Isto porque a pressão do governo chinês é para que os fabricantes reduzam investimentos no Exterior, para ocupar a imensa ociosidade das fábricas no país e, também, como medida de proteção à tecnologia chinesa empregada em modelos elétricos e híbridos.
Ainda assim a consultoria Rhodium calcula que se forem concluídos 80% dos investimentos anunciados por montadoras da China na América do Sul, principalmente no Brasil, os carros chineses aumentarão sua penetração e poderão tomar cerca de 15% do mercado local, aumentando as dores de cabeça de fabricantes ocidentais tradicionais que dominaram a região até agora – e que já pedem aos governos proteções tarifárias e investigações antidumping.
Pelo visto os comunistas chineses souberam adotar o mais competitivo capitalismo para quebrar paradigmas capitalistas. Nem os mais ferrenhos liberais leitores de Adam Smith, defensores do livre mercado, conseguem competir com a China sem a sempre tão criticada intervenção do Estado na economia. É um mundo novo e cheio de contradições.