A Royal Enfield no Brasil está capturando um nicho de mercado bastante interessante, democratizando um acesso até então exclusivo a clientes das classes A e B. Será que vingará ou será apenas mais um entrante que logo se despedirá do Brasil como tantos outros?
Hoje presenciamos um movimento de valorização de tudo o que aconteceu nas décadas passadas. Muitos creditam isso a grupos isolados de saudosistas de todos os tipos, os denominados “old-schoolers”, normalmente das gerações de baby-boomers e X (em regra geral, indivíduos de mais de 40 anos). Entretanto, um sem número de jovens e adolescentes expressa gostos que se encaixam com as décadas de 60/70/80, sejam eles musical (bandas de rock, blues e jazz), vestuário e indústria automotiva e de motocicletas.
No caso específico das duas rodas, temos exemplos interessantes de releituras de motos mais antigas aqui no Brasil, como por exemplo alguns modelos da Triumph e da sempre clássica Harley Davidson. A este grupo se juntou a Royal Enfield, que começou a vender seus modelos aqui em 2017 e a partir de 2022 começou a montagem local em Manaus no regime de CKD (completely knock down) – as peças são importadas da Índia e a montagem final é feita aqui.
Mas quem é a Royal Enfield?
A Royal Enfield é uma marca icônica inglesa que começou a fabricar motos em 1901, como uma continuação do processo de fornecimento de peças para maquinaria de precisão à fábrica de armamento Royal Small Arms em Enfield, Middlesex, iniciado em 1891. Após dois anos, o nome muda para o Royal Enfield e é criado o conhecido lema “made like a gun”.
Em 1949 as motos RE começam a ser importadas para a Índia, dois anos após a declaração de independência deste país da Inglaterra. O empresário indiano K.R. Sundaram Iyer funda a Madras Motors na Índia, empresa que começou a importar além da RE, as famosas Norton e Matchless.
No ano de 1955 a marca inglesa se associa à Madras indiana e criam a Royal Enfield India e começam até a exportar modelos para o Reino Unido, com bastante sucesso comercial. Anos depois, entretanto, um novo produto criado no Japão em 1969 mudou o mercado de motos mundial: a primeira moto 4 cilindros em linha – a CB 750, que mudou o paradigma de desempenho em duas rodas, com seu visual moderno e ronco inconfundível. Polêmicas à parte, é senso comum que as motos 4 cilindros japonesas foram as grandes responsáveis pelo declínio das motos de média-alta cilindrada (500cc +), sejam elas britânicas ou não.
E como cresceu esta demanda por motos inglesas do pós-guerra?
A mudança tecnológica de 2 para 4 cilindros foi uma grande jogada dos japoneses. Entretanto, algumas características das inglesas do pós-guerra nunca foram esquecidas: a ciclística impecável, a robustez do motor monocilíndrico ou bicilíndrico e a facilidade de upgrades, que deixou órfãos uma legião de entusiastas que curtem sujar suas mãos de graxa e gasolina.
Sejamos sinceros, o ronco de um motor 4 cilindros em uma moto é sensacional, superado apenas pelo de um motor 6 cilindros da Honda CBX 1050. Esse ronco toca o coração e a alma de quem ama as duas rodas, assim como o ronco de um V8/10/12 ou de um boxer 6 dos apaixonados pelas 4 rodas. Mas o torque de um monocilíndrico ou bicilíndrico são igualmente maravilhosos. Basta perguntar a quem já pilotou uma Yamaha Tenere monocilíndrica de 600cc. A sensação é que ela pode subir uma parede. Claro que com um certo exagero retórico. Qual deles é melhor? 1, 2 ou 4 cilindros? Não há melhor para um amante e entusiasta das 2 rodas. Cada produto com suas características, upsides e downsides. Tenho tanto prazer em pilotar um monocilíndrico de 350cc como um 4 de 1300cc, passando por um tricilíndrico de 900cc ou um bi de 650cc ou V2 de 1000cc. Cada um tem uma beleza ímpar. Basta ver os olhares apaixonados de um entusiasta olhando uma Mobilette restaurada ou uma Kawasaki H2. Moto é moto. Só entendedores entenderão a relação do Homem com a moto, muito semelhante à relação com os cavalos. A sensação de liberdade e flerte com a morte injeta uma dose cavalar de adrenalina no organismo que nos move. Simples assim.
Hoje vemos vários modelos ingleses sendo trazidos de volta à vida, como a BSA, Norton e Jawa. Todos tentando abocanhar uma fatia de market share deste saudosismo cada vez maior. E esta tendência parece ter vindo para ficar, uma vez que a sociedade funciona com movimentos pendulares, desde a moda, passando por música e design.
Nesta matéria vamos nos debruçar sobre dois modelos interessantes do lineup da RE: as 350cc e as 650cc.
Tivemos a oportunidade de pilotar por bons quilômetros a Royal Enfield 350 Classic (monocilíndrica) e a Super Meteor 650 (bicilíndrica) e nosso objetivo é responder à seguinte pergunta: cada um desses modelos vale ou não a pena? Eu compraria ou não?
Um ponto importante: a ideia não é comparar uma moto zero com uma usada de maior porte ou de segmentos diferentes. Tampouco vamos ser absolutamente técnicos e trazer informações que ou não são facilmente compreendidas pela absoluta maioria dos leitores ou são irrelevantes. Também não vamos criticar qualquer modelo por não ter alguma tecnologia state-of-the-art, pois essa não é a proposta dos dois modelos em questão.
Vamos começar pela 350 Classic
Que visual maravilhoso. Admito que fiquei olhando todos os seus detalhes por mais de 10 minutos antes de pilotá-la. E isso foi uma viagem no tempo. Curvas lindas, banco apenas do piloto, deixando à mostra o para-lamas traseiro. Um charme.
Painel envolvente, luzes de posição com um design absolutamente lindo. Painel simples, mas funcional. Ciclística deliciosa. Entra e sai de curva com uma facilidade assustadora e nostálgica. Bons freios. Puristas irão dizer que não é Brembo tampouco Nissin. É Bybre, que significa By Brembo. Mas podia se chamar XPTO. Funciona muito bem para o motor da moto. Isso é o que importa. Câmbio de 5 marchas gostoso e certinho, sem buracos. Escapamento lindo, pintura idem. Há outros modelos e cores aqui e lá fora, um mais lindo que o outro. E por fim, o preço: na casa de 22 mil reais. Uma verdadeira pechincha.
Ah, mas então esta moto não tem defeitos? Claro que tem coisas que poderiam ser diferentes. Eu por exemplo não gostei do torque ao redor de 2kgfm de roda. Realmente fazem falta 1-1,5 kgfm ali. A potência também poderia ser maior que os 20CV, mas isso é menos importante que o torque. Também achei a suspensão traseira um pouco dura demais, com amortecedores não reguláveis. Mas pelo preço não dava para esperar grandes coisas nesta seara. Se é para pecar, prefiro mais dureza que moleza de uma suspensão. Ande mais devagar na cidade esburacada e ponto final, sem surpresas desagradáveis na estrada…
Mas eu compraria ou não?
O veredito: independente da premissa que eu teria várias motos em minha casa, eu teria sim esta 350 Classic. Mas com algumas restrições. Não é uma moto para viagens. Na estrada, a velocidade confortável é de 90-100km/h. Então ela é ideal para passeios na cidade ou nos arredores, em estradas vicinais e não na Rodovia Bandeirantes ou Dutra ou BR 101. E com estas devidas considerações, ela é sim uma bela moto. Um colega me disse: talvez eu compre uma para deixar na sala de casa para admirar o design enquanto fumo um charuto, tomo um brandy e ouço Led Zepellin. Eu a teria para deslocamentos pequenos e passeios perto de casa. Nestas circunstâncias ela mostra seu melhor, na minha opinião. E esbanja classe. Todo mundo olha quando ela passa.
Agora vamos falar da Super Meteor 650
A família 650 apresenta desde uma mais clássica como a Interceptor, passando por uma Cruiser como a Super Meteor que avaliamos e uma café Racer. Basicamente a mesma moto, com variações não fundamentais. Lá fora já estreou uma bobber, chamada de Shotgun e especula-se uma mais clássica ainda, algo como uma 650 Classic.
O que gostei da moto: design novamente. Ponto alto. Belo painel, tanque, escapes e bancos super confortáveis. Aqui o motor de maior cilindrada faz uma bela diferença. Dá para curtir uma estrada tranquilamente a 110 km/h sem sustos. Nossa, não dá para andar a 150km/h e fazer ultrapassagens sem reduzir de marcha? Não. Quer fazer isso, compre uma Harley de 1900cc, 100cv e 13kgfm, pagando mais de 4 vezes o preço da RE. Novamente, vamos comparar bananas com bananas. Esta moto custa 32-33 mil reais… Com todos os opcionais, como a testada, vai a uns 36 mil, incluindo mata-cachorro (odiei este que estava nela – design absolutamente discutível e você bate o joelho para tirar o pé da pedaleira, arriscando cair como um bobo nas paradas de farol), bolsas e para-brisa. Adicionalmente, a posição de dirigir é boa; talvez eu preferisse um guidão mais recuado, mas isso é gosto absolutamente pessoal.
O motor é gostoso, mas tem limitações de torque, apesar da curva ser bem plana. A potência de 40cv é secundária para mim, pois gosto de torque para acelerações e não curto andar a 250km/h na estrada, onde o que importa é a potência.
Mas eu compraria ou não?
O veredito: compraria também, com certeza. Mas esperaria pela Shotgun, que é modelo Bobber, que prefiro.
Há também uma excelente notícia para os entusiastas de upgrades!
Uma boa notícia que pesquisei na internet e que me fez apreciar muito a entrada das RE no mercado global é o renascimento do movimento de customização mecânico. Uma pesquisa mais detalhada me mostrou projetos de stage 2 para a 350 Classic (escape, filtro e comando de válvulas com maior abertura e lift). Já na 650cc adorei encontrar um stage 2 que muda a cilindrada para 865cc, além do filtro, escape, comando do acelerador e comando de válvulas. Não é barato, mas bem bacana. Só o conjunto de pistões, anéis/pinos e juntas custa mais de mil dólares. Mas o gráfico de torque e potência na roda deste stage 2 versus o original mostra que com uns 2,5 – 3 mil dólares a moto se transforma totalmente. O mais interessante disto tudo é que, por ser um motor fácil de se mexer, isto facilita estes upgrades. E isso pessoalmente me agrada bastante, pois me leva de volta a um tempo em que os entusiastas ficavam bastante tempo mexendo em suas motos e curtindo cada modificação. Este sentimento old-fashion de quem gosta de cheiro de gasolina e graxa é impagável. E aí a RE ganha muitos pontos para mim.
Vamos analisar o upgrade stage2 que encontrei da Hitchcocks do Reino Unido:
Componentes principais
・ Comando de válvulas com maior abertura e lift (quem lembra dos P2 e P3 dos fuscas?)
・ Escape mais livre
・ Filtro de ar
・ Pistões maiores para aumento de cilindrada de 650cc para 865cc, aumentando a taxa de compressão de 9,5 para 11:1
Esse simples exemplo de upgrade deixa qualquer entusiasta emocionado. É a exemplificação do velho ditado americano de quem ama os big blocks: “there’s no replacement for displacement” – “não há substituto para aumento de cilindrada”.
De 40hp/5 kgfm para 65hp/8,6 kgfm. É possível não afirmar que é uma outra moto???
Adicionando a isso uma completa gama de acessórios e passeios/encontros em grupo de donos de RE (o popular rolê), estão criando um sentimento de pertencimento forte, como os grupos de Harley, speed, naked e big trails. Cada um no seu quadrado, óbvio, com muito respeito mútuo, mas sem deixar de lado as piadas de um contra o outro.
Para fazer curta uma longa história – a RE está atacando em algumas frentes interessantes sob a ótica de marketing e produto:
1) popularizando o rolê para o pessoal que não pode ou não quer gastar mais de 100 mil reais em uma moto maior;
2) criando um sentimento de pertencimento com customizações e passeios e acessórios que é chave para gerar interesse e fidelização à marca no médio e no longo prazo;
3) revivendo o movimento de customização mecânica. Isso também cria uma legião de fiéis consumidores
Os três pontos acima são ótimos. Escrevem uma história muito bem-vinda para os amantes do motociclismo. Afinal, o símbolo que nos une é a caveira, por um simples motivo: ela iguala todos que se unem por uma paixão comum, independente de raça, credo, orientação sexual, identidade de gênero e classe social. Motoqueiro que é motoqueiro de verdade respeita a todos, sem distinção.
Então posso comprar uma RE sem pensar duas vezes?
A resposta é mais complexa que um sim ou não diretos. Ela passa por pós-venda, principalmente. Isso mesmo. A RE está aumentando a penetração de mercado, com cada vez mais concessionárias. Está trazendo mais lotes de motos para eliminar a fila de espera das zero quilometro. Mas ainda não sabemos qual o tamanho do estoque de peças que eles possuem aqui no Brasil. E isso me deixa com uma dúvida sobre a rapidez de encontrar peças de reposição caso eu tenha uma queda e precise trocar peças de acabamento e mecânica.
Mas eu bancaria esta dúvida pelo fato de ver que a RE India está investindo forte em outros mercados e o Brasil é um mercado importante para eles. Então acredito que poderá haver soluços, mas nada que não seja mitigado pela matriz ou localmente com a injeção de capital para se trazer um parque razoável de peças de reposição. Fato é que já ouvi falar de casos pontuais de roubo/furto de RE 350 para provavelmente abastecer o mercado ilegal de peças de reposição. Esse para mim é o maior ponto de atenção na entrada da RE aqui. É mais um exemplo do Brasil não perdendo a oportunidade de perder uma oportunidade de mudança. Esse comércio ilegal de peças é fomentado sempre por uma ponta compradora, que via de regra reclama que por causa de roubos/furtos o seguro e peças são caros, e se vitimiza arrumando uma desculpa esfarrapada para seu comportamento ilegal de comprar peça também ilegal.
Em resumo: moto bacana, bonita, robusta, gostosa de pilotar, cheia de classe, boa ciclística, câmbio gostoso e bons freios. Se vc está ok em comprar a dúvida de possível demora nas peças de reposição e uma concessionária que ainda não tem sistemas interligados e com isso você tem que explicar a revisão a ser feita (e ter você o histórico de tua moto), vá em frente e seja feliz. A vida é muito curta para não aproveitar bons momentos pilotando uma moto bacana.
E não esqueça nunca: pilote sempre com responsabilidade. Mas jamais esqueça que o capacete ouve os demônios de tua cabeça, o escapamento grita o que tua garganta não consegue gritar, a suspensão aguenta os teus altos e baixos emocionais. E a moto te leva a lugares reais e imaginários que nenhum outro veículo te leva. E junto com os cachorros, ela é o melhor amigo do Homem, sempre.