E se os carros fossem mais coloridos? Sim, eles eram muito mais alegres até a virada do milênio, mas o custo e os critérios usados ao comprar um veículo explicam a nossa monotonia. De resto, um abismo tecnológico diferencia um Camaro amarelo inferno de um fusca esbranquiçado dos anos 1980
*Por Ricardo Vettorazzi
Lá pela virada dos anos 2000, os carros no Brasil deixaram de ser coloridos e adotaram o atual padrão branco-preto-prata-cinza. Não foi num dia só, mas em anos. Não estamos sozinhos, porém: eis aí um fenômeno que ocorre mundo afora – e com bastante intensidade.
É um caso de fome com vontade de comer. Para as fábricas de automóveis, é mais caro trocar a cor usada na linha de montagem a toda hora e não é difícil entender a razão: perda de material durante processos de limpeza e horas de trabalho para dar conta da tarefa. Comedimento na paleta de cores da fábrica, então, tem efeito na margem de lucro.
Uma tecnologia que um pouco antes havia começado a ganhar o mundo inteiro, as cores metalizadas, que são necessariamente mais caras (elas incluem química adicional para causar o efeito de metalização), só reforça o argumento de custo e margem. E tem mais: passado um tempinho, percebeu-se que o sóbrio e belo marrom metálico não vende bem, seja na concessionária, seja na multimarcas de usados.
Nenhum fabricante jogaria fora, contudo, uma forte demanda por modelos coloridos, se ela existisse e estivesse aí para ser agarrada. Na verdade, na outra ponta, os compradores também são conservadores. Branco e preto, prata e cinza são as cores “preferidas” no Brasil; na Inglaterra, cinza, preto e branco; e até na Itália, onde a líder Fiat resolveu tirar o cinza de seu catálogo local, surpreendendo o mundo – a empresa tem como propósito a alegria da vida e um mundo cinzento não ajuda.
Lá como aqui, o comprador sempre acha que pode revender mais facilmente o veículo se ele tiver uma cor do agrado de mais pessoas, outra semelhança que temos com os ingleses.
O fato de os carros mais caros e de alto luxo serem bem mais variados reforça tudo o que foi dito acima e nem é preciso procurar uma Ferrari com seu icônico vermelho “Rosso Corsa” ou um Lamborghini Huracán num marcante roxinho “Viola” por perto. Aliás, façamos um esclarecimento: o amarelo da Brasília dos Mamonas no início dos anos 90 não era o amarelo inferno do Camaro de hoje – há um abismo tecnológico de qualidade e durabilidade entre um e outro que nenhum polimento dá jeito.
É simples: comprava-se um fusca amarelo e, dali a pouco, ele estava esbranquiçado porque não existia ainda a resistência aos raios UV e o sol é implacável com a química das tintas. Base, tinta e vernizes são camadas que dão à cor efeitos próprios e uma durabilidade, a riscos e intempéries, que fazem parte de tudo o que diferencia os veículos que saem das fábricas hoje de um venerando muscle car beberrão dos anos 1970, mas também dos nossos carrinhos populares dos 80 e 90.
E não é só tinta e acabamento: um banho de revestimento eletrostático que peças brutas, como carroceria, capôs e portas, recebem antes da pintura propriamente dita, acabou com a corrosão há um bom tempo nos carros de hoje. Com o nome de e-coat, ele foi uma inovação da PPG lançada em 1963, mas nunca foi usado naquele belo Opalão de outrora. Todos os Opalas foram roídos sem dó, ao longo dos tempos, pela ferrugem implacável, salvo os carros de colecionadores (mas com muito trabalho de preservação).
Robôs de pintura ajudaram a esvaziar as fábricas de automóveis e levaram uma operação difícil, bruta e crítica das montadoras a um patamar de precisão e produtividade inatingível mesmo com equipes treinadas e experientes. Ao mesmo tempo, a introdução do processo com cinco camadas transformou o que o cliente final enxerga como a “pintura” num feito tecnológico.
As cores ganharam profundidade, durabilidade e efeitos impensáveis até então. Se as tintas automotivas há muito tempo são fortes, elas ficaram muito mais fortes ainda: uma década de brilho de novo (um pouco de cera aplicada regularmente e, eventualmente, um polimento adequado, também ajudam!). Toda essa resistência não seria possível no azul, digamos, calcinha de um Corcel anos 70, e não por falta de zelo: era a química da época.
Dito isso, temos muito menos cores nas ruas. Os maiores compradores de carros hoje são os frotistas, em especial as empresas de aluguel de carros, impulsionadas pela criação de toda uma nova categoria de trabalhadores – os motoristas de aplicativo. São compradores bastante conservadores, alertas à ideia de que a cor não pode ser empecilho no aluguel e na revenda do “ativo”.
Carro colorido é mais caro e demora para chegar. Como comprador, gostaria de mais cores. Na Europa, num mercado sete vezes maior e mais afluente que o brasileiro (e muito aberto à importação), a oferta de cores é amplíssima, a ponto de se poder experimentar um carro de uma determinada cor, para o cliente ter certeza de que gosta dela.
Minha impressão é que existe mais demanda a ser explorada do que imaginamos. Aliás, é perceptível, nos últimos 10 anos, a tentativa de algumas montadoras levarem cores do mercado premium para os carros de renda média. Acho ótimo. Todos nos cansamos de monotonia.
*Ricardo Vettorazzi é engenheiro químico e gerente de desenvolvimento de produtos e cores para a PPG na América do Sul.