Protecionismo do governo consolida preços altos dos fabricantes nacionais e tende a desacelerar crescimento das vendas de modelos a bateria na terra da Tesla
Se já estava difícil convencer a maior parte dos viventes dos Estados Unidos a comprar um carro elétrico, a sobretaxação a produtos chineses recém-imposta pelo governo de Joe Biden pode significar uma pisada no freio mais forte para este mercado, que já demonstra desaceleração do crescimento que vinha acontecendo nos últimos três anos.
Os números têm proporções bem diferentes mas os problemas são iguais aos do Brasil: com preços parados no alto, juros em alta que dificultam o financiamento e restrições em relação à autonomia por causa da infraestrutura de recarregamento insuficiente – existem 64 mil carregadores públicos no país e apenas 10 mil deles do tipo rápido de recarga em 30 minutos –, alguns especialistas já apontam que o mercado dos carros elétricos nos Estados Unidos estaria batendo no seu teto, com viés de baixa.
Após dois anos de crescimento expressivo as vendas atingiram quase 1,2 milhão de veículos 100% elétricos em 2023, o equivalente a 7,7% de participação no total de 16 milhões vendidos. Este ano, por enquanto, o ritmo segue estacionado em nível levemente abaixo, com quase 270 mil unidades negociadas no primeiro trimestre.
Imposto aumenta custos
Além de quadruplicar para incríveis 100% o imposto de importação sobre automóveis vindos da China – uma taxação de cunho meramente político já que quase não há carros a bateria chineses à venda naquele mercado – também foram expressivamente aumentadas as tarifas sobre baterias e insumos.
A tarifa sobre baterias importadas da China foi triplicada para 25% – e 70% dos carros elétricos nos Estados Unidos usam baterias ou insumos para elas fornecidas por empresas chinesas como a CATL – e foi introduzida alíquota de 25% sobre grafite importado, matéria-prima essencial para a estrutura interna de baterias.
Como há mais de uma década a China domina por larga margem a produção e vendas globais de baterias de íons de lítio e seus insumos, será bem difícil aos fabricantes de veículos nos Estados Unidos encontrar outros fornecedores, ao mesmo tempo em que ainda não houve tempo para estabelecer uma estrutura de fornecimento dentro dos Estados Unidos, onde o governo direciona dezenas de bilhões de dólares em incentivos para a criação de uma cadeia nacional de componentes para carros elétricos.
O efeito prático de se aumentar impostos de itens que até o momento não têm equivalentes nacionais mais baratos é o encarecimento dos custos de produção e consequente elevação de preços dos carros elétricos, que já são considerados altos pelos consumidores nos Estados Unidos.
Preços altos e sem concorrência
Com mercado protegido, custos em elevação e nenhuma competição de produtos mais baratos os fabricantes nacionais seguem focados em lançar modelos mais caros e rentáveis, como têm feito até agora. Em 2023 foram lançados no país apenas cinco modelos a bateria abaixo de US$ 40 mil.
De acordo com levantamento de consultorias o preço médio de um carro elétrico nos Estados Unidos, considerando todo o portfólio disponível em maio, era de US$ 57 mil, contra US$ 48 mil para modelos a combustão.
O Tesla Model Y custa atualmente US$ 43 mil e é de longe o carro elétrico mais demandado do mercado estadunidense, com quase 400 mil unidades negociadas em 2023, equivalente a nada menos que um terço dos 1,2 milhão de veículos a bateria vendidos no país no ano passado. Como comparação, um confortável sedã Honda Accord – considerado um modelo de luxo no Brasil – sai por cerca de US$ 27 mil.
Esta persistente distância de preço em relação a modelos a combustão mantém a classe média dos Estados Unidos longe dos carros elétricos. O incentivo de até US$ 7 mil em créditos tributários ajuda pouco porque é aplicado somente a veículos produzidos nos Estados Unidos e com alto índice de nacionalização de componentes. Com isto apenas doze modelos estão qualificados a obter o benefício máximo concedido pelo governo.
Domínio de marcas nacionais
O mercado de carros elétricos nos Estados Unidos é dominado por fabricantes do próprio país. Em 2023 a Tesla sozinha respondeu por 61% das vendas de carros elétricos nos Estados Unidos, com 655 mil unidades comercializadas.
A concorrência vem bem atrás, com 72,6 mil vendas de elétricos da Ford, 63 mil da Chevrolet, 57,6 mil da Hyundai e 50,2 mil da Rivian – esta, como a Tesla, fabrica exclusivamente modelos a bateria e vende por US$ 69 mil a versão mais barata da picape R1T.
Estas quatro marcas, Tesla, Ford, Chevrolet e Rivian juntas representaram, em 2023, mais de dois terços, 70,7%, das vendas de carros elétricos nos Estados Unidos, com 840,7 mil unidades negociadas.
Completam o ranking das dez marcas de elétricos mais vendidas duas coreanas, Hyundai e Kia, e as quatro alemãs BMW, Mercedes-Benz, Volkswagen e Audi, que juntas venderam 236,3 mil veículos.
Todas as outras marcas venderam 112 mil carros elétricos e dividiram apenas 9,4% deste mercado. E nesse bolo todo, comprovando que a sobretaxação de 100% tem mais efeito moral do que real, existe apenas uma marca importada da China em atividade nos Estados Unidos atualmente: a Polestar, submarca da sueca Volvo que pertence à chinesa Geely, que no primeiro trimestre deste ano vendeu 2,2 mil veículos, uma fração de 0,8% das 269 mil unidades a bateria comercializadas no período.
Quebradeira
Com o mercado dominado por poucos somente Tesla e Rivian conseguiram obter sucesso como marcas dedicadas 100% a produzir veículos elétricos, enquanto começa a crescer a quebradeira de alguns fabricantes que tentaram a sorte no segmento.
Segundo levantamento do The Wall Street Journal, divulgado em dezembro do ano passado, dezoito startups do setor que lançaram ações em bolsa de valores de 2020 a 2022 correm o risco de zerar o caixa até o fim deste ano, e de 43 empresas que abriram capital no período cinco faliram ou foram adquiridas.
Somente este ano fabricantes de carros elétricos e empresas do ecossistema como Fisker, Lordstown, Proterra e Electric Last Mile Solutions entraram na justiça com pedido de recuperação judicial para evitar a falência. Ao mesmo tempo a fabricante de baterias Romeo Power e a fornecedora de sistemas de carregamento Volta foram vendidas por preços bem abaixo das avaliações obtidas quando fizeram seus IPOs, lançamento inicial de ações em bolsa.
O caminho híbrido
Com as barreiras que começam a conter o avanço dos elétricos puros alguns analistas estimam que será quase impossível alcançar a ambição declarada pelo próprio governo Biden, de que sejam elétricos metade dos veículos vendidos nos Estados Unidos a partir de 2030, com o objetivo acessório de reduzir em 50% as emissões de CO2 comparativamente a 2005.
Muitos fabricantes no país que só pensavam em elétricos repensaram seus planos para o meio-termo: os híbridos. E só quem pode desviar do rumo 100% elétrico são fabricantes tradicionais como General Motors, Ford, Nissan, Volkswagen e Hyundai, que já anunciaram que vão lançar ou relançar modelos híbridos.
A Hyundai confirmou que vai produzir híbridos em sua nova fábrica no Estado da Georgia, onde investe US$ 7,6 bilhões.
Em janeiro a GM informou que vai relançar um portfólio de híbridos plug-in, ainda que a CEO Mary Barra continue a repetir que o futuro da companhia é 100% elétrico.
Em uma reunião com investidores Jim Farley, CEO da Ford, foi mais realista: “Devemos parar de falar a respeito de híbridos como se fosse uma tecnologia de transição, porque também são uma alternativa de longo prazo”.
Privilégio brasileiro
No Brasil fabricantes e governo assistem de longe a evolução e os reveses dos carros elétricos em mercados maduros, o que garante o privilégio de não cometer o mesmo erro de apostar todas as fichas em uma tecnologia imatura e ainda cheia de questões a resolver.
Apesar dos grandes saltos de vendas de veículos elétricos no Brasil nos últimos dois anos, as 26 mil unidades vendidas de janeiro a maio representam 3% do mercado total, algo como metade da participação dos modelos a bateria nos Estados Unidos e dez vezes menos em volume. Mas, curiosamente, alguns desafios para a popularização da tecnologia são semelhantes: preços muito caros para a maioria dos consumidores, juros altos que inviabilizam o financiamento e deficiência de infraestrutura de recarga.
Contudo o Brasil tem mais alternativas de descarbonização com o uso de biocombustíveis e suas emissões reabsorvíveis, principalmente o já estabelecido etanol e o crescente gás biometano, que inclusive podem ser combinados com a eletrificação, resultando em emissões menores do que as observadas em carros puramente elétricos.
Mas nem por isto o País está taxando modelos elétricos importados com tarifas punitivas como estão fazendo os países desenvolvidos. O Brasil pode deve usar todas as alternativas à mão – inclusive com a ajuda de fabricantes chinesas que estão se estabelecendo aqui – mas não pode e não deve repetir erros já conhecidos, sob pena de perder mais um bonde da história.