Ideia do carro híbrido flex depende de tantas condicionantes para dar certo que parece perda de tempo perante o futuro totalmente elétrico
Parece que o Brasil vai mesmo ser diferente do resto do mundo e, tardiamente, apostará no carro híbrido flex como alternativa ao carro elétrico, que está sendo adotado por quase todos os países, inclusive na América do Sul.
O objetivo do mundo é: descarbonizar imediatamente o planeta, que está deixando de ser um paraíso para a vida e ameaça se tornar um inferno como Vênus, superaquecido. O objetivo do Brasil é: dar um jeitinho para atender aos interesses de entidades, empresas e pessoas que têm renda, dinheiro e poder. Um jeitinho brasileiro.
O Brasil tem um compromisso internacional de reduzir as emissões de CO2 em 50% até 2030 e em 100% até 2050. Como a energia renovável brasileira vem de usinas hidrelétricas, eólicas e solares, ela é limpa e garante índices próximos de zero emissão para carros elétricos, inclusive no ciclo do poço à roda, que é o preferido pelos adeptos do etanol.
Se o país investisse já nesse caminho, chegaria antes de 2050 à neutralidade em carbono na parte que cabe à indústria automobilística. Isso custa muito dinheiro, evidentemente. Mas, por outro lado, cria um sem-número de oportunidades de negócios e empregos, movimentando a economia e colocando o Brasil na ponta-de-lança das tecnologias que o mundo inteiro vai comprar a partir da próxima década.
Os argumentos a favor do carro híbrido flex consideram que o etanol – combustível extraído da cana de açúcar – neutraliza sua própria poluição enquanto está no campo, capturando CO2 da atmosfera. É um biocombustível interessante, que foi criado nos anos 1970, durante o governo militar, quando o Brasil e o mundo sofriam com a disparada dos preços do petróleo (matéria-prima da gasolina).
“Carro a álcool, você ainda vai ter um”, dizia o governo. Era uma previsão que se confirmou, mas que os brasileiros detestaram. No dia-a-dia, apesar das boas intenções da maioria para com os destinos do planeta, as pessoas costumam pensar na sua praticidade e no seu bolso. Por isso, o carro a álcool trouxe muitos transtornos.
De cara, a sociedade inteira pagou (com bilionários incentivos fiscais e empréstimos bancários subsidiados) para que um grupo de usineiros investisse na plantação de cana-de-açúcar para combustível.
Não havia, naquela época, a preocupação ambiental. Apesar dos problemas, a maioria da população aderiu e o carro a álcool (ninguém falava etanol naquela época) chegou a ter 60% das vendas. Afinal, era um combustível mais barato.
Junto com o carro a álcool, entretanto, vieram mais latifúndios para produzir cana-de-açúcar, aumento considerável da dívida pública e até inflação de alguns alimentos, que deixaram de ser plantados para que a terra fosse destinada à produção de combustível para automóveis.
Ao longo do tempo a indústria automobilística resolveu alguns problemas técnicos que irritavam os brasileiros, como a corrosão de peças do motor, a dificuldade para dar partida no carro nos dias frios e a baixa eficiência na combustão do etanol. Mas um dia o mercado global de petróleo se estabilizou, o preço da gasolina baixou e o etanol se tornou caro.
Segundo o InfoMoney, abastecer um carro com etanol em junho só era mais vantajoso do que abastecer com gasolina em 3 dos 27 estados brasileiros (11%).
O etanol, como todo produto agrícola, depende da safra. Se existe uma seca, por exemplo, a produção é afetada; e os preços sobem. Por isso, a agricultura trabalha com excedentes. Se um dia faltar, haverá o produto em estoque. Essa é apenas uma das dificuldades que existem para “tabelar”, digamos assim, o preço do etanol.
A solução da indústria automobilística foi criar o carro flex. Surgiu em 2003, num Volkswagen Gol, e o governante da época, por coincidência, era o próprio Lula, em seu primeiro governo. Passados 20 anos, Lula é novamente presidente e o carro a álcool continua sendo um fracasso e uma esperança.
Segundo a jornalista Paula Gama, colunista do UOL, o “carro flex está mais para problema do que solução no Brasil” e, por isso, “para se ter uma ideia, 15,5 bilhões de litros de etanol foram consumidos em 2022, contra 43 bilhões de gasolina”.
Outro jornalista especializado, Boris Feldman, escreveu em sua coluna Auto Papo: “Flex? Está comemorando 20 anos desde seu lançamento em 2003, mas ajudou pouco na redução das emissões de CO2 que aceleram o efeito estufa. Pois já rodam quase 85% de automóveis no Brasil com esta tecnologia, mas a gasolina ainda representa 70% do consumo nacional, apenas 30% de etanol”.
Eis, portanto, um fracasso comercial e de público. Que, apesar disso, para que o carro elétrico seja retardado o máximo possível no país, passou a ser visto como a principal solução de descarbonização dos automóveis. É fato que o motor a combustão, abastecido com etanol, emite muito menos do que a gasolina, considerando o ciclo do poço à roda.
Para que o etanol seja realmente limpo em emissões, entretanto, será preciso investir em transporte mais ecológico, pois os tratores e caminhões usados na produção e no transporte usam motores a diesel. Quem irá convencer os usineiros a usarem picapes, caminhonetes e tratores ecológicos?
Vai ser preciso investir nisso. Também será preciso investir em motores a combustão, que são altamente ineficazes, para que recebam a ajuda de uma pequena bateria elétrica que reduzirá os impactos ambientais negativos causados pela combustão do etanol combustível.
Faz sentido investir dinheiro, tempo e pesquisa em motores condenados a morrer no mundo inteiro? Seria como apostar em novos CDs e discos de vinil num mundo que só consome música pelo Deezer e Spotify. Seria lançar um novo jornal impresso numa sociedade que se informa pela internet. Seria como investir em filmes em vídeo cassete para um consumidor que já adotou Netflix, Amazon e outros serviços de streaming.
Porém, o mais importante de tudo será convencer os consumidores brasileiros a abastecerem seus carros flex com etanol e não com gasolina. Ora, por que farão isso se hoje 7 em cada 10 motoristas não querem saber de etanol no tanque de seus carros? Além disso, por que os brasileiros comprarão carros híbridos com etanol se eles também serão muito mais caros do que os seus automóveis convencionais?
O carro híbrido com etanol seria uma ótima solução para a metade da década passada. Mas o Brasil estava tão ocupado resolvendo seus problemas políticos e econômicos que teve de importar do Japão (com o Toyota Corolla) a tecnologia do carro híbrido flex. Isso aconteceu em 2019, mas com uma tecnologia dos anos 1990, do Toyota Prius.
Passados quase cinco anos, o país debate essa “novidade” para implantá-la só a partir de 2026, ou seja, sete anos depois de deixar de ser uma novidade. E justamente no ano em que a Europa começará a substituir os atuais carros a combustão por novas gerações de carros elétricos com o mesmo preço.
Um exemplo: o Volkswagen Polo sairá de cena e em seu lugar entrará o Volkswagen ID. 2all (que pode até se chamar Polo, só que elétrico). Custará 25 mil euros. Em seguida, a Volks vai investir na versão elétrica do Up, com preço de 20 mil euros.
A maioria das montadoras conseguiu o que queria: a bênção do governo para esta terceira vida do carro a álcool. Cerca de cinco décadas depois de ter sido lançado, o carro a álcool é uma opção para apenas 3 de cada 10 usuários de automóveis. Muitos chamam isso de sucesso. Eu chamo de fracasso.
O etanol poderia ter utilização mais nobre gerando energia onde é produzido sem ter que transportar e emitir CO2 para isso. Além disso, o etanol também poderia ser priorizado para a produção do hidrogênio verde, ao invés de ser queimado nas cidades, gerando outros gases nocivos.
Por outro lado, o governo afirma: “Em 20 anos de carro flex no Brasil, o consumo de etanol evitou a emissão de quase 800 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, trazendo mais qualidade de vida para a população!”
Tomara que em sua terceira vida o carro a álcool, agora rebatizado de híbrido flex com etanol, seja o sucesso que muitos prevêem. Será, claro, uma solução transitória. De outro lado, o Vale do Jequitinhonha vai produzir lítio suficiente para abastecer as baterias de no mínimo 1,5 milhão de carros elétricos por ano, a partir de 2024. Aqui mesmo, no Brasil.
Essa produção certamente será usada pela Europa, pela China, pelos Estados Unidos e por todos os países que já decidiram entrar de cabeça na criação de novos negócios para os carros elétricos. Até mesmo a Índia já desenvolveu um carro elétrico com preço equivalente a R$ 56 mil (Tata Tiago).
Quando (sabe-se lá em que ano) a transição terminar, veremos quais países terão comprado os carros híbridos flex a etanol da indústria brasileira. Porque uma coisa é certa: haverá brasileiros comprando carros elétricos fabricados em outros países.
Nunca os consumidores brasileiros deixaram de ser adeptos de novas tecnologias. Deixariam agora em troca do etanol combustível, algo que nunca apoiaram totalmente?