Vendas de carros 0 km migraram primeiro para os usados, agora para as motos. Porém, diante da crise, a tendência é de ressaca para todos
Já são mais de 515 mil motocicletas, scooters, motonetas e ciclomotores emplacados no Brasil só nos cinco primeiros meses de 2022, segundo a Fenabrave (federação nacional dos concessionários). O crescimento é de 25,61% em relação ao ano passado, melhor desempenho do setor de duas rodas em sete anos.
Poderíamos estar celebrando este resultado – as empresas da área certamente estão, especialmente a Honda, que detém quase 80% de participação no mercado –, mas ele não é tão otimista quanto parece. Na verdade, reflete de maneira crua e imediata uma população empobrecida.
O cenário é preocupante: inflação, desemprego e taxa básica de juros na casa dos dois dígitos percentuais; disparo do trabalho informal; salário mínimo sem aumento real desde 2016; renda média da população em queda constante (foram 7% só em 2021, segundo o IBGE). Diante desse combo venenoso, sobra quem com dinheiro para investir em um veículo novo?
O primeiro setor dentro da cadeia automobilística nacional a sentir os sintomas desse país doente foi o de automóveis e comerciais leves zero-quilômetro. Que, diante da pandemia de covid-19, despencou em 2020 para menos de 2 milhões de unidades comercializadas e até agora não se recuperou. Em 2022, periga registrar números até piores que os de dois anos atrás.
Tem crise de fornecimento de semicondutores e outras matérias-primas? Certamente, mas também estamos vendo outro fenômeno: as fabricantes estão abandonando segmentos mais populares, de volume, em busca de maior rentabilidade por veículo vendido. O sarrafo está consideravelmente mais alto e só uma pequena parcela da população consegue saltá-lo.
Não acredita? Basta olhar os números da Bright Consultant: segundo a consultoria, o tíquete médio de um automóvel ou comercial leve novo em nosso mercado saltou de R$ 80.000 no fim de 2020 para já se aproximar de R$ 140.000 no primeiro semestre deste ano.
Inicialmente, os grandes beneficiários desse movimento foram os lojistas de carros seminovos e usados, que viram o volume de vendas de seu segmento saltar quase 19% no ano passado, para mais de 11 milhões de veículos negociados.
Só que a alta nos preços dos modelos novos também pressionou as etiquetas dos seminovos e, posteriormente, usados. E aí a corda estourou: entre janeiro e maio deste ano o setor não apenas perdeu tudo que ganhou em 2021 como vem vivendo uma retração de quase 21%, dois pontos percentuais a mais do que havia sido o crescimento anterior.
Agora, enquanto concessionários de zero-quilômetro e lojistas de usados coçam a cabeça em busca de soluções, são os vendedores de motos que sorriem à toa, com crescimento acima de 25% Coincidência? Nenhuma. Até porque o cenário é muito simples de entender.
O brasileiro está mais pobre, mas ao mesmo tempo não deixa de desejar, almejar ou necessitar um veículo particular mais novo para seu transporte. E se não dá para comprar um carro zero, vai um seminovo. E quando até um usado fica inacessível, dá-se um jeito e migra-se para uma motocicleta. Ainda mais com os preços dos combustíveis do jeito que estão…
Só que os valores dos modelos de duas rodas também estão encarecendo. Neste ano, a valorização é de aproximadamente 1% ao mês, mais ou menos em ritmo similar ao da inflação.
E como a renda dos brasileiros não está crescendo, pelo contrário, uma hora este será outro elástico que também se esticará ao máximo e gerará um efeito rebote, retraindo logo na sequência anterior. E aí o setor viverá uma ressaca parecida com aquela experimentada hoje pelos setores de carros novos e usados.
O que fazer? Não há mistério: é preciso estancar a cruel sangria da inflação – e não, não é congelando preços que se o faremos –, além de gerar mais e melhores empregos, que voltem a evoluir a renda média de nossa população. Na teoria, tudo parece simples, claro, mas na prática…
Enquanto tivermos uma distribuição de renda tão desigual e uma parcela da população tão mais pobre, podemos discutir o quanto quisermos questões como impostos ou custos de produção, mas não vai adiantar muito.
Em um país empobrecido, as migalhas serão sempre prioridade em relação a produtos de alto valor agregado, como um veículo. Mesmo que se queira muito comprar um carro novo ou uma moto nova. E isso o brasileiro já demonstrou N vezes o quanto quer.