*As opiniões manifestadas nesse texto são de responsabilidade exclusiva do autor.
De um modo resumido, exponho os principais pontos a serem observados nos próximos anos para que a indústria automobilística, no Brasil, não entre em colapso após 2030.
Antes, devo alertar para o fato que dez anos passam muito rápido e decisões estratégicas podem ser revistas no setor automotivo. Como exemplo dessa vulnerabilidade, bastou um período de cinco anos de crise econômica para que a Ford deixasse o país e para que o presidente da GM ameaçasse fazer o mesmo. Há quase dez anos a Ford estava anunciando investimentos de mais de um bilhão de dólares por aqui.
Quase todas as montadoras no Brasil trazem uma fábrica de motores, mas com os carros elétricos não será simples trazer fábricas de baterias para o país, mesmo porque as baterias estão em evolução e os carros elétricos sofrerão obsolescência acelerada por toda tecnologia que possuem. Mesmo que os carros elétricos venham a ser montados no Brasil, as baterias continuarão sendo importadas por alguns anos e isso representará mais da metade dos custos do produto.
RISCOS E DESAFIOS
ESG x Greenwashing – Entregar uma mobilidade que seja, realmente, amiga do meio ambiente. Carros elétricos não representam ESG
É compreensível que muitas empresas queiram aproveitar a onda de conscientização sobre o ESG e as responsabilidades corporativas em temas sociais, ambientais e de governança. Contudo, os carros elétricos não devem ser usados como instrumento de propaganda sobre o tema ESG, pois a produção das baterias desses veículos é tão nociva ao meio ambiente quanto a extração de muitos combustíveis fósseis. As atividades nas minas de Cobalto e Terras Raras infringem princípios básicos sociais e de proteção ambiental. Além disso, as baterias íon de Lítio levam em sua composição, além do Lítio, Fosfato, Manganês, Níquel, Cobre e outros elementos que, com o aumento da demanda, apenas farão redirecionar a ordem de poder mundial daqui a algumas décadas. As baterias em estado sólido (SSB), que devem chegar ao mercado até a metade desta década, continuarão utilizando esses elementos em sua composição e provavelmente, acrescentarão outros não menos nobres.
Carro elétrico não é ESG, mas sim um negócio que criará novas oportunidades na cadeia de valor do setor automotivo. Utilizar a produção de carros elétricos como base de sustentação para uma empresa ambientalmente responsável é greenwashing e oportunismo.
Baterias – Aumentar os ciclos e a densidade; reduzir o peso e o tempo de recarga.
As baterias são, ao mesmo tempo, o coração e o calcanhar de Aquiles dos carros elétricos. Algumas pesam mais de 600kg, têm vida útil limitada e uma autonomia que, além de insuficiente para viagens longas, pode ser ainda menor dependendo da carga e forma de utilização do veículo. Custam mais da metade do valor do veículo usado, não são intercambiáveis entre marcas, possuem tecnologias distintas e continuam em evolução acelerada, o que fará com que veículos elétricos atuais estejam obsoletos daqui a alguns anos. Para resolver isso, quase todas as montadoras estão investindo em empresas de desenvolvimento de baterias com eletrólitos em estado sólido. Isso promete mais autonomia, menos peso, menor tamanho, maior vida útil e mais segurança (menor risco de incêndio).
Assim, novas tecnologias requerem muito investimento e como essas empresas não são entidades beneficentes, não espere redução no preço dos carros elétricos no futuro, pelo contrário, o preço deverá subir, assim como os preços das commodities minerais que entram em sua composição. Como exemplo, o preço do Lítio aumentou mais de 390% em um período de doze meses.
Segurança – Eliminar o superaquecimento e os riscos de incêndio nas baterias (e nas garagens).
Um desafio prioritário para as fabricantes é o risco de incêndio. O problema de superaquecimento das baterias ion-de-Lítio com eletrólitos líquidos ou pastosos é velho conhecido e espera-se que seja resolvido com a chegada das baterias em com eletrólitos em estado sólido (solid-state). Várias montadoras, do Oriente ao Ocidente, estão fazendo recall dos carros elétricos por causa de alguns casos de incêndio durante a recarga e uma fabricante orientou, oficialmente, os clientes a não carregarem os veículos dentro das garagens e os estacionarem fora de suas residências. Sim, isso está no comunicado da fabricante para os clientes.
A bateria íon-de-Lítio, esteja ela em um carro, patinete ou smartphone, pode pegar fogo se for fabricada incorretamente, danificada ou “estressada” se o software que a protege de receber muita carga elétrica não funcionar corretamente. Quanto aos carros elétricos, um dos potenciais problemas das baterias é o sistema interno de refrigeração e com o aumento das vendas, esse tipo de incidente deve ocorrer com maior frequência, seja por erro de montagem, má utilização ou formação de cristais nos eletrólitos.
As fabricantes alegam que, estatisticamente, o número de incidentes é insignificante, mas a questão é quando esse “insignificante” ocorre na garagem da sua casa ou no subsolo do seu prédio de apartamentos com outras dezenas de veículos ao lado. A bateria de um carro elétrico em chamas é uma cena assustadora, um fogo muito difícil de ser apagado.
Logística – Estabelecer rede de recarga capilar em um país continental e viabilizar as longas viagens.
Como estabelecer uma rede de recarga de baterias elétricas ao longo da malha rodoviária em um país com dimensões continentais? Com a tecnologia atual, as baterias de um veículo em trânsito demoram muito para receber 80% da carga total e será necessário ter paciência. Quem está acostumado a sair de São Paulo, almoçar em Curitiba e dormir em Florianópolis, poderá fazê-lo também com um carro elétrico, mas demorará um pouquinho mais e deverá torcer para não pegar aqueles intermináveis congestionamentos na Régis Bitencourt, na BR-376 ou na BR-101. Então, imagine se a viagem for localizada no interior do país, cruzando os estados do Centro-Oeste, Norte ou Nordeste. O desafio de ofertar suporte de carga e serviços para veículos elétricos ou híbridos, no Brasil, é enorme e complexo.
Nos primeiros anos, o mercado de carros elétricos deverá se concentrar para utilização urbana e viagens de curta distância, lembrando que as características de malha e infraestrutura do interior do estado de São Paulo não se repetem no restante do país. Os investimentos nas redes e malhas de recarga precisarão de subsídios e fomento.
Obsolescência – Estabelecer estratégia comercial que assegure o valor do bem no tempo.
Os carros elétricos, célula de hidrogênio ou híbridos, adquiridos hoje, estarão obsoletos em um período de dez anos e poderá ocorrer com eles, o mesmo que ocorre com os smartphones. Antigamente, as operadoras de telefonia aceitavam os aparelhos velhos como parte de pagamento na compra de um novo e pagavam muito bem por eles, hoje não aceitam mais. Talvez as montadoras tenham que fazer algum programa similar de “trade-in” para viabilizar a continuidade do negócio e deveria incluir a troca das baterias usadas dos veículos. Tudo isso custa muito dinheiro e certamente irá para o preço dos veículos novos, além da questão da evolução tecnológica, que não deverá parar nas primeiras baterias SSB que chegarem ao mercado.
Assim, não espere por reduções de preços em massa dos carros elétricos no futuro, pelo contrário, a tendência é de alta.
Veículos Usados – Desenvolver mercado confiável de usados para viabilizar a venda de veículos novos.
Desnecessário explicar, de forma detalhada, sobre a importância que o mercado de usados tem para viabilizar a venda dos veículos novos. O cliente não fará com os carros elétricos, o que eventualmente faz com os aparelhos usados de telefone celular. Se não conseguir revender o veículo elétrico usado, por um valor que não seja tão depreciado em relação ao bem, talvez não compre um outro veículo elétrico novo e isso poderia aumentar a demanda pelos modelos a combustão interna.
“Você compraria um carro elétrico usado, hoje, se ele tivesse cinco anos de uso, sabendo que em pouco tempo teria que substituir a bateria e ela pode custar mais da metade do valor do bem?”
Esse é um grande desafio para as montadoras e uma equação para ser resolvida em pouco tempo.
Modelo de negócios – Desenvolver um modelo acessível ao mercado consumidor brasileiro.
Esse item diz respeito à forma de venda, atendimento aos consumidores e o papel das redes de concessionárias. Muita coisa irá mudar, novas formas de fazer negócios, novas oportunidades de ganhar dinheiro, maior controle e conhecimento sobre a jornada do cliente. Aos poucos, as redes de concessionárias perderão esse controle sobre seus clientes e a informação migrará naturalmente para as fabricantes. Outro ponto importante é viabilizar a venda dos veículos elétricos ou híbridos em volumes que justifiquem a operação no país, pois o mercado terá seu tamanho reduzido devido aos elevados preços.
No Brasil, aproximadamente 70% do mercado é composto por veículos com preços de até oitenta mil reais, uma realidade muito distante dos preços cobrados pelos elétricos e híbridos disponíveis e como mencionei anteriormente, não há sinalização objetiva de que os preços dos veículos elétricos serão reduzidos no futuro. Aliás, reduzir preços de veículos novos não é algo presente no DNA das fabricantes.
Sustentabilidade – Investir em tecnologias alternativas que ampliem os horizontes para uma mobilidade limpa, renovável e sustentável.
A hora e a vez do setor sucroenergético do Brasil para o mundo
É necessário que o propósito contemple outras tecnologias, além dos carros elétricos, célula de hidrogênio ou híbridos. Assim, desenvolver produtos e tecnologia derivados do setor sucroenergético, tendo o etanol como fonte de energia primária é o caminho mais viável para salvar o setor automotivo brasileiro no futuro e isso inclui a utilização de Biogás e Biometano para veículos comerciais. O setor sucroenergético nos garante soberania de energia limpa e renovável no desenvolvimento de projetos de veículos elétricos, híbridos ou células de combustível com base no etanol, sim, o etanol como fonte primária de energia para gerar eletricidade.
Isso é fantástico e deve ser incentivado. Um passo importante na valorização da matriz energética brasileira possível e viável para a economia e para o setor automotivo. Melhor ainda, se incentivado for com tecnologia nacional e exportado para outros países em desenvolvimento.
Segregação – Manter o Brasil atrativo à permanência das montadoras no País.
Aqui, um dos maiores riscos iminentes para o setor. Tentar impor, por decreto, um novo modelo de negócios para o setor automotivo no Brasil jamais funcionará. É um risco para a economia, para o parque industrial instalado e poderá defasar o Brasil dos demais países desenvolvidos, pois dificilmente as montadoras farão grandes investimentos de “localização” em um mercado que representa menos de 3% do mercado automotivo mundial e ainda vem acompanhado de tantos solavancos políticos, tributários e econômicos. Quem é do mundo corporativo entenderá com mais facilidade essa colocação e sabe que os investimentos precisam dar retorno.
Cabe às entidades setoriais e ao governo estabelecerem políticas de incentivo às pesquisas e desenvolvimento de soluções alternativas locais que viabilizem os investimentos e a manutenção das empresas no país.
“As declarações de algumas montadoras, no sentido de que poderiam deixar o Brasil, não podem mais ser tratadas como simples ameaças. Em meus 35 anos de vivência na indústria automobilística observei que, sempre, uma vez tomada a decisão na matriz em relação a outro país é quase impossível revertê-la.”
Economia – Manter a atividade econômica setorial e assegurar o futuro do aftermarket.
A cadeia automotiva brasileira representa, historicamente, 20% do PIB industrial e deve ser protegida de regulações impositivas que estabeleçam regras inalcançáveis em curto, médio e longo prazos.
Tramita no Senado Federal um perigoso projeto de Lei que institui a política de substituição dos automóveis movidos a combustíveis fósseis. Proíbe a venda de veículos novos movidos a gasolina ou diesel a partir de 2030 e a circulação de qualquer automóvel com motor a combustão a partir de 2040. (Fonte: Agência Senado). Projeto de Lei nº 304/2017.
Se aprovado, da forma como está escrito, colocará sob risco o futuro da indústria automobilística e uma parte da economia, pois estabelece condições de produção, tecnológicas e mercadológicas que o setor automotivo não terá como atender. No portal “oleodieselnaveia” estão disponíveis as análises sobre esse inconsequente projeto de Lei.
A referida proposta demonstra desconhecimento sobre os setores industrial, automobilístico e econômico, podendo causar um impacto negativo irreversível para o país. O custo da irresponsabilidade em seguir diretrizes externas, as quais não são adequadas à nossa realidade, pode ser muito elevado, hipotecando o futuro do setor e de toda cadeia de fornecedores, distribuidores e agentes financeiros.
O mercado precisa ter um tamanho (vendas anuais) que justifique e viabilize os investimentos das montadoras e o parque circulante deve ser protegido, para que mantenha o setor do aftermarket em operação. Em tempo, para cada emprego gerado na indústria automobilística, o aftermarket gera cinco.
O mercado de carros e caminhões no Brasil tem potencial de atingir a marca de três milhões de veículos anuais, em médio prazo, podendo alcançar volumes próximos de quatro milhões de veículos anuais a longo prazo. Apesar dos números potenciais parecerem animadores, representam pouco em relação ao mercado mundial e os investimentos realizados aqui precisam retornar aos investidores.
A adoção dos veículos elétricos ou híbridos, como regra, forçará a redução desses volumes potenciais e provavelmente não haverá espaço para a manutenção do parque industrial instalado. É de se esperar que, nessas condições, mais montadoras deixem o país e se tornem importadoras.
É preciso responsabilidade ao tratar o tema e não se empolgar com tendências, muitas vezes criadas artificialmente, para satisfazer oportunidades de negócios em países que dominam uma tecnologia ainda estranha à nossa realidade de produção e consumo.
Leia também a coluna anterior:
https://carsughi.uol.com.br/2021/10/dicas-de-governanca-corporativa-para-as-concessionarias-de-veiculos/