Motor tão econômico quanto a gasolina, uso nos híbridos, geração de eletricidade: com o álcool, podemos assumir a vanguarda da tecnologia
O escritor Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro sofre do complexo do vira-latas, a mania de achar que tudo o que é nosso é pior do que o equivalente estrangeiro.
O etanol que abastece nossos carros desde 1979 é uma das vítimas desse sentimento de inferioridade. Muita gente é contra o uso desse combustível vegetal nos veículos, geralmente apontando problemas que são mais culpa do país do que da tecnologia em si.
Eu até entendo parte das críticas, mas avanços técnicos têm reduzido a cada ano os efeitos danosos. A colheita mecanizada evita as queimadas no plantio, os rejeitos recebem melhor tratamento e os motores ficaram mais eficientes e sem falhas na partida.
As qualidades, porém, são inegáveis: reduz em até 82% as emissões de CO2, é renovável e poderia ser produzido por qualquer nação – além da cana, o etanol é extraído de beterraba, milho, outros grãos e até das sobras de empresas de bebidas. Nada mal para um combustível que pode ser utilizado em 85,2% dos carros novos (essa foi a produção de veículos flex em 2020).
Etanol como vantagem competitiva
No entanto, há um novo benefício do etanol que poderemos ver em breve: alimentar veículos elétricos. Curiosamente foi preciso um argentino para defender uma bandeira tão brasileira.
Pablo Di Si, presidente da Volkswagen América Latina, falou em entrevista ao Valor Econômico sobre a possibilidade de transformar em vantagem competitiva o uso do álcool em futuros projetos. Poderia ser, inclusive, um aliado daquele que é considerado hoje o carrasco da indústria: o automóvel elétrico.
“Não é importante só ter o carro elétrico, mas como abastecer. E por que não usar o etanol? A tecnologia não existe hoje, mas temos o etanol e, com pesquisas, podemos [alcançar isso]. Precisamos estudar como transformar esse etanol e abastecer o carro elétrico, não só no Brasil, mas nos Estados Unidos, na China”, afirmou Di Si.
Concordo plenamente. O Brasil não pode mais ficar imóvel apenas assistindo à revolução tecnológica dizimar o atual modelo de negócio dos fabricantes. Precisamos ser protagonistas do nosso desenvolvimento industrial. O fechamento das fábricas da Ford e da Mercedes-Benz não pode se tornar uma regra. Senão teremos o mesmo destino da Austrália, que nos anos 70 chegou a produzir quase 500.000 veículos ao ano (exportando até para o Brasil, como o Chevrolet Omega de 1998 a 2012) e hoje é apenas um mero importador de automóveis.
Célula de combustível pode ser a solução
O que Pablo Di Si propõe não é um devaneio. Já tem gente apostando nisso hoje. Quem acreditou nessa tecnologia foram os japoneses. A Nissan vem trabalhando num projeto de carro elétrico com célula de combustível. A diferença é que usa etanol em vez do tradicional hidrogênio líquido, como fazem Toyota, Honda e Hyundai.
O benefício desse tipo de veículo é que dispensa o grande conjunto de baterias. A eletricidade é gerada no próprio automóvel: uma reação química transforma o hidrogênio estocado no tanque em energia elétrica. Assim, o carro é mais barato (a bateria representa até 40% do custo do veículo), mais sustentável (não há o complicador da produção e do descarte das baterias) e elimina-se a longa demora da recarga (basta encher o tanque de hidrogênio).
A desvantagem, no entanto, é a enorme dificuldade de ter uma rede de abastecimento de hidrogênio líquido. É aí que entra a tecnologia da Nissan. Sua célula de combustível extrai o hidrogênio do etanol, sem gerar emissões de gases. Assim, o problema do abastecimento seria facilmente resolvido. É uma solução ideal para implantar o carro elétrico em países com dimensões territoriais como o Brasil. O sistema já está em testes por aqui desde 2016 em um furgão e-NV200, em parcerias com USP e Unicamp.
Outros japoneses também já se mexeram em favor do álcool. Não é segredo que a Toyota lançou por aqui o primeiro híbrido flex do mundo. Mas o que poucos sabem é que a iniciativa já atraiu os olhares na Europa. Faz sentido, já que uma boa parte desses países adota a gasolina com 5% ou 10% de álcool na composição. E eles discutem subir em breve para 20%. A empresa disse que também houve interesses na Índia, Tailândia e Indonésia.
Temos novidades no horizonte do etanol até quando falamos do velho carro a combustão. A Fiat está desenvolvendo um revolucionário motor turbo que roda com 100% de álcool que seria tão ou mais econômico do que a gasolina. Ele usa a base do 1.3 FireFly que a empresa produzirá em Betim neste ano para equipar modelos da Fiat e Jeep. Se der certo, esse motor deve mudar completamente como encararmos o etanol. Imagine ter um desempenho superior ao de um carro a gasolina e ainda pagar de 20% a 30% menos na hora de abastecer?
É bom deixar claro que não quero fazer apologia do carro elétrico ou do etanol. Mas é importante mostrar que há caminhos para o Brasil não ficar na retaguarda tecnológica do setor.
Como somos um mercado relativamente atrasado, sabemos que o motor a combustão ainda terá vida longa por aqui, possivelmente de 20 a 30 anos. Mas também sabemos que os ventos que sopram dos mercados desenvolvidos podem acelerar esse processo. Vários países europeus decretaram (precocemente) o fim da produção/venda de carros a combustão até 2030. O presidente Joe Biden mudou a diretriz energética dos EUA, tem um plano de implantar 500.000 eletropostos no país e mandou substituir a frota de 645.000 veículos do governo por modelos elétricos. Maior mercado do mundo de carros elétricos, a China anunciou no ano passado seu plano para se tornar uma nação neutra na emissão de carbono.
Como se vê, a preocupação ambiental é uma preocupação global. Tanto de governos quanto de empresas e consumidores. Portanto, o Brasil não terá como escapar desse movimento. No máximo vai adiá-lo. Para estarmos preparados quando o momento chegar, precisaremos da união de governo e fabricantes para começar a pensar numa nova política industrial para o setor.
O etanol não é o único caminho, mas pode ser o mais fácil, a melhor transição entre as duas realidades. A não ser que nosso complexo de vira-latas diga que o exemplo da Austrália seja melhor do que qualquer outra solução brasileira.