Como o Coronavírus colocou a moto de volta na foco da mobilidade.
Há anos defendo a teoria de que os motofretistas, ou motoboys, são uma espécie de Geni* do trânsito. Quando vai tudo bem eles são odiados e maltratados, mas quando alguém está com fome e não quer sair de casa são os motoboys que levam a pizza, aí eles são adoráveis, não importando o CPF, ficha corrida, comportamento e educação.
Essa história se repete há mais de três décadas. Odiados por uma parcela da cidade, foram eles que de certa forma estão salvando milhares de pessoas durante o período de confinamento do Coronavírus. E a moto entra com aquilo que ela tem de mais destacável que é a mobilidade a baixo custo, acesso fácil em áreas densamente habitadas e, cereja do bolo, é um veículo naturalmente feito para atender o isolamento social, porque as motos de carga só levam uma pessoa. E quando levam duas, ambas estão de capacete.
Os aplicativos de entrega de mercadorias, refeições e documentos não pararam e houve até uma correria em busca de mais motociclistas. Imagine o que é manter as pessoas em casa em uma cidade como São Paulo que tem 12,5 milhões de habitantes, população maior que a de Portugal.
O estigma dos motofretistas não é de hoje. Eu mesmo fui motoboy no final dos anos 1970 quando a indústria brasileira ainda engatinhava. Motoboy era a ascensão profissional do office boy. Ter uma moto em São Paulo fazia o dia render muito mais porque não precisava passar horas se deslocando em ônibus lotados e desconfortáveis.
Mas a primeira moto nacional de 125cc só veio em 1976. De forma muito discreta começávamos a ver algumas delas paradas em frente aos bancos, cartórios, fóruns etc. A indústria foi crescendo, a facilidade de aquisição aumentando e nos anos 1990 os motoboys já eram uma realidade. Pipocaram empresas especializadas em entregas rápidas e a atividade deu um salto gigantesco a partir do ano 2000 quando os problemas de mobilidade nas grandes cidades já estavam muito mais evidentes.
Herança maldita
Quando começou, a atividade de motoboy era bem remunerada e atraía estudantes – como eu – e aqueles que simplesmente não se adaptavam a um ambiente de escritório – como eu de novo. Foi graças a essa atividade que consegui pagar os primeiros anos da faculdade de jornalismo. Também era uma atividade para apaixonados por motos. Tinha um ar de rebeldia e liberdade que atraiu muita gente.
Mas deixa lembrar como era o mercado nessa época. Em 1992 o total de vendas foi de pouco mais de 90.000 motos no ano. Quando rompemos o século 21, mais precisamente em 2005 o mercado atingiu essa cifra de 90 mil unidades por mês! E chegou a um milhão/ano neste mesmo ano. Esse crescimento veio no embalo de um programa de liberação de crédito que inundou as cidades de motos.
Com a facilidade de acesso, rapidamente o número de motoboys explodiu exponencialmente. Como em tudo no mundo, o aumento na oferta de mão de obra fez o valor das tarifas despencarem. Só para título de comparação, em valores de hoje, eu recebia uma média de 20 reais/hora. Hoje, passados quase 30 anos, o valor é de maios ou menos R$ 8,00 a hora. Porém, com uma diferença: hoje os aplicativos pagam por quilômetro rodado, um perigo porque estimula o aumento da velocidade.
No meu tempo era perfeitamente possível trabalhar seis horas por dia, de segunda a sexta, estudar e ainda sobrar tempo livre para lazer. Hoje um motociclista profissional passa até 12 horas por dia, sete dias por semana, em cima da moto para chegar a um “salário” de R$ 4.000. Com muito esforço!
E vieram os problemas naturais dessa expansão. Um deles foi o aumento no acidente com vítimas. Mas esse mito caiu por terra quando a Faculdade de Medicina da USP, junto com a Abraciclo, realizou uma pesquisa para identificar o perfil da vítima. Para surpresa geral, os motoboys representavam apenas 28% das vítimas. Algo difícil de entender quando se observa a forma quase suicida como pilotam.
Na verdade é uma ilusão. Calcula-se que circulem cerca de 250.000 motociclistas profissionais em São Paulo, dentro de uma frota de mais de um milhão de motos. Os motoboys rodam todos os dias, muitos quilômetros e essa vivência traz habilidade. Já o motociclista que usa a moto apenas como meio de transporte roda poucos quilômetros e demora mais para obter habilidade. Isso gera dois tipos de perfis: o habilidoso sem responsabilidade e o responsável sem habilidade! E quando se trata de sobrevivência no trânsito a habilidade é mais determinante do que a responsabilidade.
Não é só isso. O motoqueiros irresponsáveis representam uma pequena parcela. A imensa maioria pilota de forma responsável. Porém mais uma vez entra em cena a ilusão. Quando um motociclista responsável passa por um motorista ou pedestre, a moto nem sequer é percebida. Se passarem vinte “normais” ninguém percebe. Mas se passar UM fazendo barulho, buzinando, batendo no espelho será lembrado por muito tempo. Isso causa a sensação de que tem mais maus do que bons motociclistas.
E ainda tem o aspecto da imitação. Como já mostrei, os motoboys adquirem habilidade rapidamente, enquanto um motociclista “civil” demora mais. Porém esse novato acaba imitando o arquétipo do motoboy e tenta acompanhar esse ritmo sem ainda ter adquirido experiência. O resultado é o que ficou demonstrado na pesquisa: 72% das vítimas são de pessoas comuns e não motoboys!
Amor em tempos de vírus
Eis que chegamos no ano 2020 com uma surpresa: um vírus letal que se espalhou rapidamente pelo mundo e fez o brasileiro experimentar uma tal de quarentena. A recomendação de isolamento social obrigou mais da metade da população a ficar dentro de casa (segundo censo da Prefeitura na primeira semana de abril), enquanto a outra parte trabalha para ajudar quem fica isolado. Assim o brasileiro redescobriu a importância do motoboy!
Com os novos aplicativos de transporte com moto, como iFood, Uber Eats, Loggi ou Rappi essa atividade permitiu, facilitou e até incentivou a quarentena. E como na fábula da Geni e o Zepelim, o motoboy passou a ser admirado, respeitado e recompensado.
Em Belo Horizonte, MG, os moradores começaram uma campanha – rapidamente disseminada para outras cidades – de solicitar um lanche e dar ao próprio motociclista! Foi uma ação de reconhecimento porque muitos desses motociclistas não tem tempo nem de parar para se alimentar. Em São Paulo eu vi uma cena inesquecível: um motoboy tirou um pacote de geléia de mocotó em barra do bolso e começou a comer enquanto estava parado no semáforo! E ainda me ofereceu!
As gorjetas também aumentaram. Dos tradicionais dois reais saltou para cinco e até dez reais! Um reconhecimento pela importância desse trabalho. Alguns motoboys iniciaram a campanha “fique em casa” pelas redes sociais e com avisos em suas enormes mochilas. Outra consequência da pandemia foi o aumento expressivo de mulheres na atividade! Principalmente jovens em idade escolar. Isso eu percebi pelo aumento de mulheres procurando o meu curso ABTRANS. A boa notícia é que mulheres se envolvem muito menos em acidentes!
Além disso os acidentes diminuíram quase a zero, porque as cidades estão praticamente vazias de carros, mantendo apenas caminhões e ônibus em circulação. Sem os carros não há necessidade de transitar no corredor entre eles, uma das principais causas de acidente. E nem precisa correr, porque sem carros a média horária das motos aumentou sensivelmente.
Ao contrário do que se imagina, não é o excesso de velocidade que causa acidentes entre moto e carro, mas a DIFERENÇA de velocidade! Imagine uma via que tem limite de 50 km/h. Se o trânsito está carregado e os carros circulando a 15 km/h, uma moto rodando a 45 km/h está dentro do limite de velocidade, porém está três vezes mais rápida do que um carro. É isso que causa os acidentes.
Para piorar essa equação, a 45 km/h (ou 12,5 metros por segundo) uma moto em ótimas condições, pilotada por um motociclista habilidoso, percorre cerca de 10 metros até parar totalmente. Dez metros são mais ou menos cinco carros, mas a fechada vem do motorista que está a dois carros de distância! O resultado dessa matemática é a batida. Por isso, nos meus cursos eu recomendo usar o corredor entre os carros no máximo a 30 km/h.
Pelo menos durante esse período de quarentena, com a pandemia do Covid-19, os motociclistas estão vivendo uma condição inédita de cidades praticamente vazias e apenas as motos em circulação. Surgiram várias ações espontâneas para ajudar e melhorar a vida dos motoboys. Alguns shopping centers permitiram o funcionamento de restaurantes para atendimento delivery e liberaram a entrada apenas de motos.
No centro de São Paulo os estacionamentos, que normalmente não aceitam motos, abriram as portas para os motociclistas cobrando valores simbólicos. Prédios residenciais que antes proibiam a entrada de motos já estão permitindo. Ou seja, toda a cidade está percebendo a importância da moto como ferramenta de mobilidade quando todo mundo está parado.
Qual seria o melhor cenário? Que ao fim dessa pandemia a população continuasse a olhar para estes profissionais com o mesmo respeito e carinho. Claro que existem os maus, mas é assim em qualquer atividade humana, da medicina à engenharia, passando por todas as áreas. Isso é a humanidade.
Mas eu lembro um conselho que aprendi com um adestrador de cães. Trate com carinho que receberá carinho de volta. Trate com brutalidade e vai levar uma mordida! Isso funciona com gente também!
A história da Geni e o Zepelim termina quando ela salva a cidade, mas no dia seguinte toda a população acorda e volta a desprezá-la e humilhá-la. Não deixe isso acontecer com os motoboys. Respeite, agradeça e ajude os motoboys, porque você vai continuar precisando deles.
*Geni era a personagem da peça Ópera do Malandro, escrita por Chico Buarque. Nesta fábula existia uma cidade onde todos desprezavam e humilhavam a Geni por ser uma prostituta que se deitava com qualquer um. Mas quando a cidade foi ameaçada por um comandante doido em um zepelim cheio de bombas quem salvou foi a Geni, por quem o comandante se apaixonou e desistiu da ideia de destruir a cidade. A letra começa com todo mundo jogando pedra na Geni, repetindo a frase “maldita Geni”. Mas quando ela salva a cidade mudam a estrofe para “bendita Geni”.
Para conhecer a música Geni e o Zepelim clique AQUI.