Existem várias teorias sobre o apego às coisas antigas ou vintage. Pode ser desde a necessidade de uma conexão com o passado, até o puro e simples modismo. Seja qual for o motivo é inegável que a indústria percebeu essa tendência já há tempos e, claro, decidiu surfar nessa onda. Porém no caso da marca inglesa Royal Enfield essa tendência é diferente, porque ela sempre foi antiga.
Nascida em 1901, na Inglaterra, a marca sucumbiu a eficiência e estilo das japonesas e para não desaparecer de vez transferiu sua planta para a Índia, país que estava engatinhando no processo de industrialização. Os modelos de 535 cc são produzidos até hoje na Índia, com o mesmo aspecto das inglesas dos anos 1950.
Até que recentemente começou a desenvolver seus próprios projetos como a Himalayan 400 e em 2018 iniciou os projetos do motor de dois cilindros, que equiparam seus modelos pela última vez em 1970. Assim nasceram as Royal Enfield Continental GT 650 e Interceptor 650, que acabam de chegar ao Brasil (com preços entre 25 e 28 mil reais), e tivemos o prazer de pilotar por quase 1.000 km nas mais diferentes situações de clima e piso.
O ponto alto dos dois modelos é o estilo absolutamente clássico. Não fosse pela injeção eletrônica e freios a disco daria para confundir com uma moto antiga. Aliás, esse é o charme! Ter uma moto feita hoje com o mesmo visual do ano que você nasceu (se tiver mais de 50 anos, claro).
Durante a apresentação os executivos brasileiros, indianos e ingleses mostraram o maravilhoso trabalho para criar peças como as tampas laterais do motor, a tampa do cabeçote ou o tanque de gasolina como se tivesse acabado de sair do túnel do tempo. E conseguiram, a exemplo do que já fez outra inglesa clássica, a Triumph com a linha Bonneville.
Ah, importante: antes de mais nada, nem nos seus sonhos mais delirantes tente comparar essas Royal com as Triumph. São propostas, fábricas e investimentos completamente diferentes. Esclarecido isso, vamos ao teste.
Parada
Um dos pontos altos do estilo é a tentativa de aproximar ao máximo com as “originais”. Por isso o guidão da Interceptor é cromado e tem um cross-bar (barra como mas motos de cross). Espelhos redondos, assim como os instrumentos do painel, limitado a velocímetro e conta-giros. No velocímetro está o hodômetro total e dois parciais, bem como o marcador de gasolina. A respeito desses instrumentos devo registrar que em dois modelos avaliados apresentou condensação depois de molhar (chuva e lavagem). Também senti falta de um indicador de marcha e relógio de hora.
Alguns detalhes chamam atenção como os protetores nas aletas do cilindro para não queimar os joelhos do piloto; um prolongador de plástico no para-lama traseiro, feito para ser retirado e dar um ar mais clássico ainda e o super bem vindo cavalete central na Interceptor que ajuda muito a vida no caso de um furo de pneu na estrada.
Na Continental GT gostei muito dos semi-guidões, do tanque totalmente café-racer e do banco já preparado para receber uma capa que o torna monoposto.
A título de curiosidade, os escapamentos lembram muito as Yamaha TX 650, motos criadas no começo dos anos 1970, justamente inspiradas nas clássicas inglesas. E já que o tema é volta às origens, outro item charmoso é a buzina dupla, como era nas motos europeias daquela época.
Ambas tem o mesmo motor de dois cilindros paralelos, com a ignição defasada em 270º. Essa configuração é o segredo para um funcionamento super suave, quase sem vibrações e que lembra muito as nossas antigas Honda CB 400. A potência fica em 47 CV a 7.250 RPM, que pode não ser muito animadora, mas o grande barato é a curva de torque quase plana, com 80% dos 5,3 Kgf.m entregues a 2.500RPM. Com esse torque e câmbio de seis marchas pode-se imaginar um funcionamento bem “elástico” e econômico.
Com várias combinações de cores – inclusive a maravilhosa versão cromada – esta Interceptor é um convite a customização. Eu mesmo pensei em várias!
Em movimento
Tivemos a oportunidade de rodar com as duas versões em uma bela região entre Cunha (SP) e Paraty (RJ) passando por uma tortuosa serra, porém sob chuva intermitente. Comecei pela Interceptor e foi uma boa surpresa. A posição de pilotagem é a mais tradicional possível, com o guidão largo, na altura ideal para meus quase 1,70m. As pedaleiras não ficam tão recuadas e, junto com o banco largo e de boa densidade, permitem pilotar por horas.
Logo nos primeiros quilômetros percebe-se o motor com funcionamento bem “liso” sem vibrações típicas dos bicilíndricos. E o câmbio não “pede” marcha como acontece nas motos modernas, especialmente as japonesas. Graças ao torque logo em baixa rotação, a sensação é de respostas vigorosas com força quase a partir da marcha lenta. Nesta hora faz falta o indicador de marcha porque é fácil esquecer de engatar a sexta!
Na estrada foi a vez de avaliar o comportamento em diferentes velocidades. A velocidade ideal de cruzeiro fica perto de 120 km/h quando o conta-giros revela modestos 4.900 RPM (a faixa vermelha está a 7.500 RPM). A 100 km/h viaja super suave a 4.000 RPM. Claro que tive de ver como respondia em velocidades mais altas e num trecho tranquilo cheguei a 170 km/h ainda com curso no acelerador, porém a esta velocidade a frente se mostrou um pouco instável.
Notei que todas as 40 motos desta avaliação estavam rebaixadas em cerca de 1,5 cm. Isso não é normal e pode ser uma tentativa de minimizar esse efeito. É evidente que uma moto com esse caráter e pneus com medidas bem singelas (Pirelli Phanton radial 100/90-18 na frente e 130/70-18 atrás) não foi feita pra rodar a esta velocidade, mas vale a pena investir numa regulagem de suspensão ou mesmo uma barra estabilizadora (que está presente) para eliminar esse balanço.
Quase chegando na região de curvas da serra veio a chuva e tive a chance de avaliar se os Pirelli segurariam a bronca. Sim, com folga de segurança. Se o pneu traseiro mais fino pode perder um pouco de eficiência em curvas de média e alta velocidades, no piso molhado é um alívio, porque oferece aderência na curva e na frenagem. O que me tranquilizou foi o sistema de freios com disco e ABS nas duas rodas.
Continental GT
Os executivos da RE brasileira apostam suas fichas na Interceptor com razão. Será o modelo mais vendido, porém quando avaliei a Continental GT tive a impressão que a diferença entre as duas não será tão grande. Primeiro porque a posição de pilotagem é bem confortável, apesar de os semi-guidões sugerirem o contrário. O tanque é mais fino com encaixes para os joelhos. Os semi-guidões não são tão baixos quanto se imagina nas fotos. E as pedaleiras são recuadas uns 10 cm em relação à Interceptor.
Aqui vale uma explicação. Quando pilotei a Interceptor achei o câmbio um pouco impreciso, especialmente na passagem da quinta para sexta marcha. Já na GT o câmbio pareceu bem mais preciso. Só que é o mesmo conjunto motor e câmbio, como pode ser? Simples, como as pedaleiras do piloto são mais avançadas na Interceptor foi preciso usar um braço oscilante no pedal do câmbio. Essa articulação fez aumentar o curso da alavanca e tirar um pouco da precisão.
Em menos de 50 km rodados já estava muito à vontade na GT 650. A posição dos braços e pernas lembraram algumas esportivas dos anos 1980. O conjunto de suspensão é o mesmo em ambas as motos, com regulagem nos amortecedores traseiros (com reservatório de gás).
Conseguimos pegar um longo trecho de estrada seca e pudemos fazer algumas curvas mais tranquilos. Equipada com os mesmos pneus, a Continental GT também apresentou oscilação nas curvas, mas em função da posição de pilotagem – que joga o tronco do piloto mais para a frente – não apareceu o leve shimmy em alta velocidade nas retas.
Difícil afirmar qual das duas seria a minha favorita. Gosto muito da esportividade da GT, mas o tanque em forma de gota e o guidão tipo “scambler” da Interceptor são um convite a viajar por horas a fio. Não pude avaliar o consumo, mas pelo que li nas avaliações feitas no exterior, fica na casa de 20 km/litro, que é normal para esse tamanho de motor. O tanque da Interceptor tem 13,7 litros, enquanto na GT tem 12,5 litros. Ambas tem peso contido para o porte, com 200 kg na Interceptor e 198 kg na GT.
Ainda sobre o estilo clássico vale uma reflexão. As rodas raiadas são quase uma unanimidade entre os admiradores de motos vintage. De fato são bem mais adequadas ao estilo, porém tem a desvantagem de obrigar o uso de pneus com câmara. Aí temos de considerar que pneu sem câmara é mais seguro e exige muito menos esforço para reparar um furo. Talvez fosse o caso de a Royal Enfield avaliar a possibilidade de adotar rodas raiadas com raios perimetrais, que permitem o uso de pneu sem câmara. Pelo menos nas unidades exportadas para o Brasil.
O mercado irá responder todas essas questões em breve, quando esses modelos chegarem nas concessionárias. Ainda existem poucas no Brasil, mas há previsão de abertura de novas nas principais capitais. A concorrência será com os modelos usados de Triumph e Harley-Davidson. O alvo é o público que curte motos customizadas, diferentes e clássicas. Essas Royal não tem o mesmo padrão de acabamento de Triumph e Harley, especialmente quando se notam detalhes como a pintura da mesa superior com pequenos pontinhos, num efeito chamado “casca de laranja”.
Ainda sobre mercado, a melhor notícia é que a Royal Enfield anunciou a instalação de uma fábrica no Brasil. Certamente na Zona Franca de Manaus, para aproveitar os subsídios federais. Além de ser uma prova da confiança em nosso mercado, essa unidade poderá servir para produzir modelos menores (de 350cc) para abastecer atender várias faixas de preço. Só não pode perder esse charme anglo-indiano que fez muito sucesso aqui.
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