Ah, no meu tempo… Tem coisa mais chata do que esse discurso? Mas tenho de admitir que no meu tempo as motos eram pura e simplesmente… motos! Não tinha tanta especificidade como hoje em dia. Quem comprava moto tinha de usar na cidade, na estrada, fora da estrada, com garupa, com mochilão de lona nas costas e a vida era bem simples e divertida. Quando começaram a surgir as motos mais específicas para esportividade, off-road, custom etc foram surgindo as tribos defensoras deste ou aquele estilo.
Aí vem a Triumph e resgata uma das categorias mais charmosas e versáteis de todas: a scrambler! A palavra scrambler em inglês significa justamente isso: misturador, embaralhador, algo que veio para bagunçar os conceitos. Nos anos 1960 as marcas japonesas se apressaram em trazer modelos com esse conceito, com pneus com duplo propósito cidade-campo, suspensões de cursos longos, guidão largo e o mais marcante de tudo que é o escapamento saindo pra cima, passando por baixo da perna do piloto.
Assim que montei nessa Triumph percebi que não foi feita para pilotos baixos. Com 870 mm de altura do assento ao solo ficou bem difícil para meus 1,68m. Para quem tem mais de 1,75m vai se sentir em casa. Como a ideia foi pegar estrada durante a semana, tive de enfrentar um congestionamento monstro que só os paulistanos sabem o que é. E foi nesse percurso que percebi de cara um enorme abacaxi que vai ser difícil solucionar: o calor do escapamento em contato com a coxa direita é simplesmente insuportável.
Sei que desenvolver um produto é a eterna briga do marketing com a engenharia. Claro que algum engenheiro percebeu que esse escapamento traria problemas e conforto, mas o marketing falou mais alto porque é simplesmente a peça mais bonita da moto. Bonita e insuportável. Não vou alongar muito no tema, porque é um desconforto que aparece somente no trânsito e esta é uma moto feita pra viajar e se divertir.
Como é
O modelo avaliado (XE) é o top da linha, com itens exclusivos e até a geometria diferente, mais alta, feita para uso misto de verdade. Em breve chegará outra versão (XC) mais simples, mais baixa e, claro, mais barata. A versão que tivemos em mãos tem preço (em SP) de R$ 59.990,00. Um pouco alto pelo o que oferece, sobretudo no conforto.
Como tudo que a Triumph desenvolve, essa moto tem um acabamento primoroso. Cada parafuso tem tratamento estético, peças de alumínio escovado estão por toda parte, mas o grande destaque é o tanque de gasolina em forma de gota (capacidade de 16 litros), com uma cinta de aço passando pelo centro e o bocal imitando os veículos antigos de corrida. Na verdade é só uma capa para esconder a tampa de plástico com chave.
Muito boa a solução na parte traseira, tentando resgatar as motos dos anos 1960, com pequenas setas fazendo as vezes da lanterna traseira. As setas tem dupla função: indicar a direção e de lanterna. A Harley-Davidson usa essa solução em alguns modelos e dá um aspecto bem mais limpo, sem lanternas enormes.
Outra ideia digna de nota são as rodas raiadas, mais fiéis ao estilo vintage. Para permitir a montagem de pneus sem câmara (os ótimos Metzeler Tourance) a Triumph usou a estratégia de raios perimetrais que não atravessam os aros. Solução já adotada pela BMW há décadas. A roda raiada, além de mais adequada ao estilo, tem a vantagem de ser mais confortável do que as rodas de liga leve.
Ainda olhando a Scrambler XE parada, podemos ressaltar o guidão largo de alumínio, os protetores de mão, a perfeita escolha pelos espelhos retrovisores redondos e o painel que merece ser detalhado. Com tanta tecnologia embarcada o painel se torna multifunção com várias informações extremamente úteis como consumo instantâneo, consumo médio, tempo de viagem, autonomia, além dos modos de pilotagem que variam do “rain” (chuva), que reduz a potência e torna a moto menos agressiva, até o modo “off-road pro”, que elimina todos os controles de tração e ABS.
Também devemos destacar o aquecedor de manopla (muito bem vindo no inverno) e o “cruise control” (controle de velocidade de cruzeiro). Em alguns países foi proibido o uso do termo “piloto automático” para essa função por dar margem a múltiplas interpretações. É o cruise control mais simples que já avaliei: basta um toque e está ativado! E, acredite, é um tremendo alívio para viagens. O sistema desativa mexendo no acelerador ou tocando num dos freios.
Tudo nessa moto foi pensado para ser estiloso. De tão bem desenhada é o tipo de moto que merece ficar guardada na sala de casa!
Como anda
Muito! É uma das motos mais completas do mercado. O motor é um poderoso bicilíndrico de 1.200cc, capaz de desenvolver 90 CV a 7.400 RPM. A potência nem é o mais importante, mas o torque de 11 Kgf.m a apenas 3.950 RPM. Pra quem não gosta muito de interpretar esses números, isso significa que esse motor é extremamente “elástico”, com retomadas de velocidade vigorosas praticamente desde a marcha lente.
Em termos práticos é uma moto que exige poucas trocas de marchas e, ao contrário da maioria das motos japonesas, essa inglesa não fica “pedindo” marchas. No trecho urbano pode-se rodar em segunda e terceira na boa, sem constantes trocas de marchas. Neste caso o indicador de marcha no painel ajuda bastante.
A primeira vista as dimensões podem dar impressão de moto difícil de pilotar no uso urbano, mas tirando o desconforto do escapamento, a moto é bem maneável e até circula bem no caos paulistano. Só mesmo na hora de parar que a coxa encosta na proteção do escape e gera um sufocante contato! Para compensar escolhi um roteiro que teria longo trecho de estrada, duas serras e uma sequencia divertida de fora de estrada.
Na primeira parte uma das melhores mais estradas do Estado, com limite de 120 km/h, velocidade que o motor se mantém a tranquilos 4.000 RPM e ainda tem muito acelerador. Nesta velocidade a moto quase não apresenta vibração e roda muito macio, extremamente silenciosa. Só mesmo quando o motor é levado a mais de 5.500 RPM a dupla de escape emite um ronco esportivo, agradável, mas sem estardalhaço.
Uma das dificuldades enfrentadas pela engenharia para criar uma moto que seja eficiente em todo terreno é proporcionar aderência tanto no asfalto quanto na terra. A primeira boa surpresa foi perceber que isso a Triumph conseguiu total êxito. Boa parte desse sucesso vem dos pneus Metzeler Tourance (90/90-21 na frente e 150/70-17 atrás), com uma curiosidade: o pneu traseiro é radial, fabricado na Alemanha e o dianteiro é diagonal, fabricado no Brasil! Além de garantir boa aderência nas curvas, se mostrou silencioso na rodagem, algo difícil de conseguir em pneus de uso misto.
Nos trechos de alta velocidade a Scrambler XE enfrentou as curvas com total segurança e sobra de limite. Pode-se mesmo inclinar sem medo e acelerar com vontade porque o controle de tração garante que não vai dar nenhum susto.
O melhor estaria por vir num trecho de serra muito travado, com curvas de mais de 180º. Para esse teste preferi usar o módulo “sport” e o resultado foi a sensação de estar pilotando uma supermotard. Pura diversão!
Fora da estrada
Mas nem tudo é tão bom que não possa melhorar! Confesso que duvidei da eficiência dessa Triumph, mas nada como um teste para derrubar falsas impressões. A estrada estava na melhor condição possível: seca, com areia fofa, erosões e pedras.
Já escrevi mais de uma vez que a eficiência de uma moro no fora de estrada depende 80% do piloto. O que independe do fator humano é o bom trabalho do conjunto de suspensão, freios e pneus. No caso dessa Triumph a suspensão é um exemplo de globalização com garfo invertido Showa (japonês) na frente e par de amortecedores Öhlins (suecos) reguláveis na traseira. Esse conjunto é amplamente regulável, mas fica uma dica: se não entender como funciona nem se atreva e mexer porque o número de combinações é exponencial e nossa paciência é bem pequena!
Para esse percurso coloquei o módulo na posição “offroad pro”, que desliga todos os controles eletrônicos e tudo fica a cargo do piloto. Dos 850 km que rodei nesse teste foi, de longe, o trecho mais divertido. Como estava sozinho não abusei muito, mas foi o pacote completo: gás no meio da curva, saltos, todas as derrapagens possíveis e frenagens escorregando pra todo lado.
Incrível como ela é maneável mesmo com seus quase 220 kg (em ordem de marcha). Mas o grande responsável por esse desempenho versátil são mesmo os pneus. Eles seguraram a onda e a maior surpresa foi sentir as frenagens seguras na terra!
Único detalhe contra é mais uma vez os escapamentos que impedem que o pé esquerdo apoie inteiramente na pedaleira quando o piloto fica em pé. Além de esquentar a panturrilha. Já a pedaleira tem uma proteção de borracha que pode ser removida para andar na lama e melhorar a aderência das botas.
De volta pra estrada de asfalto foi hora de fazer o balanço deste produto. Outra falsa impressão é do banco. Feito para parecer vintage, tem um desenho clássico extremamente elegante. Mas por ser fino passa impressão de desconforto. Esquece! Tem “alma” de gel e permite pilotar por horas seguidas. É a soma do charme com conforto. Só não tem espaço para nenhuma bagagem, nem mesmo uma capa de chuva. Certamente o mercado irá oferecer opções de alforjes e bagageiros.
Presença comum nos carros de luxo, essa Triumph adota a chave por presença. Basta carregar a chave no bolso. Segundo os marqueteiros, é o tipo de item que “agrega valor”. Na prática é um mimo totalmente desnecessário em motos. A velha chave codificada já atende 100% das necessidades. Outra função herdada dos automóveis de luxo é o painel que permite conectividade com smartphone e até câmera de vídeo GoPro. Esta função ainda não está disponível.
Realmente o maior trabalho que a Triumph terá pela frente é resolver o desconforto gerado pelo escapamento que também incomoda quem vai na garupa. Existe solução, claro, que pode passar pelo simples revestimento de manta térmica, até algum espaçador mais eficiente. Porque este Scrambler tem tudo para ser aquele modelo de moto três em um: para usar no dia a dia, pegar estrada e curtir um off-road, com muito charme vintage.
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