Seis cilindros em linha, 2,8L, cabeçote de 24 válvulas com duas árvores de comando movidas por corrente (variáveis em abertura somente nas válvulas de escape, chamado de VANOS), aspiração atmosférica. Caixa de marchas manual, de cinco velocidades, ligada ao (correto) eixo motriz por um cardã. O controle de tração é no pé, e o de estabilidade na mão. Start/Stop? Recuperação de energia de frenagem? Hoje, não. A única modernidade que se reconhece aqui é o sistema de freios antibloqueio, também conhecidos pelo acrônimo “ABS”. Certamente, esta não é a descrição de um veículo atual: a preservação do meio-ambiente (e da própria segurança viária) exigiu diversas adaptações nos automóveis nas últimas décadas: zonas de deformação programada, motores downsized, câmbios automáticos ou automatizados com 347 marchas, pneus de baixa resistência à rolagem e uma bizarra hipertrofia automotiva. Sedã executivo com 2,70 m de entre-eixos é coisa do passado.
O carro em questão é uma BMW 328i 1996, da geração E36, fabricada entre 1991 e 1999. Automóvel de grande sucesso no mundo todo, fez a imagem da BMW no Brasil, ao chegar logo após a abertura às importações no início dos anos 90. Era um sedã familiar, com espaço para cinco passageiros e sua bagagem, que daria trabalho para um Ferrari da década anterior (desde que não fosse o F-40, claro…) em qualquer prova de desempenho, com robustez mecânica, consumo aceitável de combustível e conforto. Esta versão, 328i, dispunha de 193cv e 280Nm de torque, suficientes para levar os 1395 Kg (em ordem de marcha) aos 100 Km/h em torno de sete segundos. “Carro de autobahn”, sólido, veloz e confortável o bastante para viajar acima de 200 Km/h por horas a fio, podendo atingir algo em torno de 240 Km/h de velocidade máxima.
Em oposição, a BMW 320i da geração atual, a F30: lançada no ano de 2011, como linha 2012, tem tamanho comparável ao de uma série 5 de vinte anos atrás, basicamente a mesma massa que a E36 e muita tecnologia a mais: controles de tração e estabilidade multiníveis, chapas da carroceria com espessura variável, computador de bordo com sistema multimídia (e até o manual de instruções do automóvel), nota máxima em testes de colisão, pneus “verdes” com tecnologia runflat, chave presencial, um pequeno motor de quatro cilindros e apenas dois litros com turbocompressor de dupla voluta, ligado às rodas traseiras (amém) pela onipresente ZF 8HP, uma competente caixa automática epicíclica de oito velocidades, com nada menos que duas overdrives, que não deve em nada às melhores caixas de dupla embreagem deste lado de PDK, M-DCT e afins. Pode percorrer quase duas dezenas de quilômetros com um mísero litro de gasolina, em condições favoráveis. “Culpa”, em maior parte, dos comandos de válvulas variáveis em abertura e levante (na admissão e no escape, ainda denominado VANOS), sendo a variação de levante responsável por eliminar a borboleta de aceleração (Valvetronic), somados ao já mencionado turbocompressor de dupla voluta. Entrega 184 cv e 270 Nm de torque, conforme declarado pela BMW, suficientes para levar o automóvel aos 100 Km/h em torno de sete segundos e atingir a velocidade máxima também em torno de 240 Km/h. Todavia, seria impossível acompanhar um Ferrari de dez anos antes.
Justiça seja feita em nome do carro atual: trata-se de uma das versões mais básicas e lentas da linha, enquanto a E36 328i era o que havia de melhor na Série 3 nos anos 90 que não viesse da Motorsport GmbH. Uma 335i/340i atual ainda apanharia de uma italianinha de sangue-quente da década passada, mas não faria tão feio assim. Enfim, a ideia aqui é comparar duas BMW série 3 de épocas diferentes, separadas por vinte anos, mas com desempenho semelhante. O pacote de equipamentos e o preço são irrelevantes nesta análise: o foco é na experiência de condução.
A longa introdução não foi feita à toa, caro leitor. Ajudará a entender as diferenças e semelhanças entre os dois carros e, mais que isso, entre duas gerações de entusiastas.
Comecemos pelo teutonic terror dos anos 90: a E36 é dura, seca, baixa, compacta. Os comandos são genuinamente pesados, mais do que se espera de um sedã de luxo. O isolamento acústico não é grande coisa, e eventual chuva dura na lata do teto fará questão de ser notada, assim como ruído de rolagem dos pneus. A direção é muito pesada para um sistema assistido hidraulicamente, mas conta com riqueza de detalhes ao motorista tudo o que se passa lá na frente. Sim, “lá”: um adulto mediano senta-se atrás da coluna B, razoavelmente distante do eixo dianteiro, bem ao centro do carro. Isso, obviamente, para não estragar a distribuição de massas em 50/50, clássica da série 3, e que molda todo o caráter dinâmico do carro. Aliás, este pode se resumir em uma palavra: neutralidade. O embuchamento duro, as batidas secas na suspensão e a cabine apertada são facilmente perdoáveis pela ajustabilidade do chassis em curvas. O carro atende às provocações do condutor: eventual substerço ou sobresterço serão por culpa daquela pecinha atrás do (grande) volante de aro fino. É bom lembrar que o diferencial não tem deslizamento limitado, então one tire fire será uma constante, ainda mais somada à rolagem da carroceria. Sim, a carroceria rola, mas os movimentos são controlados e sinceros: o carro nunca pega o condutor de supetão, todas as reações são francas e transparentes. É um verdadeiro driver’s car, que recompensa uma tocada limpa e confiante, mas também diverte em mãos mais agressivas. Sobretudo se tiver o diferencial trocado por uma unidade de deslizamento limitado… O motor, por sua vez, é um show à parte: responsivo, com pegada fantástica em médios regimes, extremamente elástico e suave, como todo seis-em-linha que se preze. Isso sem contar o ronco, parece seda se rasgando. Dá água na boca e arrepia os pelinhos da nuca.
Obviamente, nem a engenharia bávara é perfeita: os freios são apenas suficientes e a direção é um tanto desmultiplicada (o que causa estranheza, dado o esforço necessário para operá-la). Ah, o escoamento de água do carro é… pitoresco. Ative o limpador de para-brisa com as janelas abertas e tome um banho. Ou faça uma curva qualquer com o teto molhado e as janelas abertas, tome outro. Nada que desabone um automóvel brilhante, mas irrita. Enfim, é um carro antigo e, como se sabe, carro antigo não tem defeito: tem caráter.
Um salto de vinte anos nos leva à atual geração, que já se aproxima de sua despedida. O ciclo médio da série 3 é de sete anos, e já se foram seis. Enfim, quando a geração F30 foi lançada, envelheceu a concorrência em meia década da noite para o dia, tanto em design quanto em tecnologia. O carro é grande: a título de comparação, a distância entre-eixos cresceu 14 cm em relação à E36. O carro está mais comprido, mais largo e tem pneus de maior diâmetro, além de 55 Kg a mais (lembremos que traz quatro bolsas infláveis a mais, muita eletrônica e carroceria consideravelmente maior, então o aumento de peso é tolerável; e continua mais leve que uma M3 E36, por exemplo). A direção agora traz assistência elétrica e no Brasil somente são vendidos veículos com transmissão automática.
Engana-se quem pensa que o automóvel tridimensionalmente maior e mais pesado não é divertido. Por mais que a direção careça de feedback, o embuchamento de suspensão seja mais mole, os amortecedores mais soltos e falte ao carro o terceiro pedal, a F30 sabe entreter seu motorista. De uma forma bem diferente da E36, mas sabe: o carro é ainda mais neutro, talvez até meio traseiro. Trailbraking mais agressivo na entrada de curvas fará a traseira dançar sensualmente e, com experiência, é possível alinhar o carro rumo ao ponto de tangência com o mínimo de esterço. Aliás, o carro esterça com finesse e permite que pilotos mais agressivos saiam ilesos, mesmo com as assistências eletrônicas desativadas, enquanto a E36 cobraria a falta de respeito com uma rodada. Por mais que a suspensão mais macia incomode em transições de relevo, nas quais pode “dar batente”, e a traseira oscile à moda coreana, o carro pouco aderna nas curvas (mérito das barras estabilizadoras e das bitolas maiores), tampouco afocinha em frenagens ou afunda a traseira em acelerações (mérito, aqui, do entre-eixos mais longo e do consequente maior momento polar de inércia). Assim, é possível “entrar quente” numa curva e soltar a traseira após o ponto de tangência, graças à inércia relativamente alta do eixo traseiro, que também concentra 50% da massa do veículo. O controle de estabilidade é razoavelmente permissivo, tornando possíveis pequenos sobresterços facilmente corrigíveis com um rápido contra-golpe no pequeno volante (que conserva o aro fino nesta versão, que este escriba prefere). No geral, o carro permite velocidades muito mais altas que a E36 e passa maior sensação de leveza ao volante, sendo muito fácil imprimir um ritmo mais forte de direção.
Certamente, a excelente caixa ZF colabora com suas marchas curtas, mantendo o motor sempre “cheio” (embora já disponha do torque máximo a 1250 giros por minuto, mais giro entrega mais potência, e é a potência que importa). Embora as trocas sejam rápidas, o padrão de movimento seja o correto (reduz para frente e aumenta para trás) e a transmissão aceite reduções com giro “lá em cima”, o excesso de marchas pode confundir nas reduções antes de curvas mais lentas, e o câmbio faz um trabalho excepcional trocando as engrenagens por si próprio, reduzindo ou mantendo as marchas de acordo com a necessidade. No caso, é melhor aproveitar e focar na dinâmica do carro, que transmite muita confiança, conforme já se disse. Confiança essa estendida aos freios, excepcionais: as BMW modernas trazem freios capazes de tolerar mais potência que o motor pode produzir, e as respostas do pedal são excelentes. O fading demora a aparecer e é plenamente possível brecar no meio de curvas sem medo de rodar, já que a eletrônica dá conta de distribuir a frenagem de forma a manter o carro na trajetória desejada. A sensação é viciante.
O motor downsized tenderia a desapontar, mas não é o caso. Não é e nem tenta emular um autêntico sechszylinder aspirado, mas dispõe de amplo torque disponível praticamente desde a marcha-lenta, dando a sensação de se conduzir um carro com motor muito maior. O lag de funcionamento do turbocompressor é desprezível e os zunidos e espirros de funcionamento entretêm o condutor, que mal se recorda de ter perdido o ronco de aspiração anasalado e o tal ronco de seda se rasgando emitido pelo escape da E36. Isso sem contar na economia no posto…
No fim das contas, os carros trazem características afins que denotam uma origem comum: a Neue Classe, que antecedeu a criação da própria série 3. Chassis arisco, divertido, seguro e previsível sempre foram marcas do best seller da gigante de Munique e, embora com temperos diferentes a cada geração, sempre foram o metro-padrão para as concorrentes e o maior exemplo de sedã executivo que também diverte. A tradição, aliás, é algo forte na BMW, apesar dos tempos exigirem medidas que diluam um pouco o envolvimento com o automóvel. Ainda estão lá a grade duplo-rim, a Hofmeister Kink, o pedal de acelerador pivotado no assoalho (graças a Deus), os comandos firmes, o painel com iluminação alaranjada, o vinco duplo nas laterais, o arranjo básico das lanternas e os faróis de parábola dupla.
Uma nova geração da série 3 se aproxima, e os fanáticos torcem para que continue sendo o benchmark em diversão ao volante. Que assim seja, por favor.